quinta-feira, 10 de novembro de 2016

CULTURA E RELIGIÃO





FALE SOBRE A PLURALIDADE DE CULTURAS E O PAPEL DO EVANGELHO


                                                                EUGENIA GOMES DA SILVA                                                                                                 
                                                                                                                                           


INTRODUÇÃO


Novas situações culturais, novos campos de evangelização

 O processo de encontro e comparação com as culturas é uma experiência que a Igreja viveu desde os começos da pregação do Evangelho » (Fides et Ratio, n. 70), pois « é próprio da pessoa humana necessitar da cultura para chegar a uma autêntica e plena realização » (Gaudium et Spes, n. 53). Também a Boa nova que é o Evangelho de Cristo para todo homem e para o homem todo, o qual « é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido » (Fides et Ratio, n. 71), chega até ele na sua própria cultura, que impregna a sua maneira de viver a fé e ao mesmo tempo é progressivamente por ela modelada. « Hoje, à medida que o Evangelho entra em contato com áreas culturais que estiveram até agora fora do âmbito de irradiação do cristianismo, novas tarefas se abrem à inculturação » (Fides et Ratio, n. 72). E, ao mesmo tempo, culturas tradicionalmente cristãs ou impregnadas de tradições religiosas milenares se encontram abaladas. Por isso, trata-se não somente de justapor a fé às culturas, mas também de dar nova vida a um mundo descristianizado no qual muitas vezes as únicas referências cristãs são de ordem puramente cultural. Estas novas situações culturais através do mundo apresentam-se à Igreja, no limiar do terceiro milênio, como novos campos de evangelização.

Diante destes desafios da « época em que vivemos, ao mesmo tempo dramática e fascinante » (Redemptoris Missio, n. 38), o Conselho Pontifício da Cultura gostaria de partilhar um conjunto de convicções e de propostas concretas, fruto de numerosos contatos, principalmente graças a uma cooperação fecunda com os bispos, pastores das dioceses, e os seus colaboradores neste campo apostólico, em vista de uma renovada pastoral da cultura como lugar de encontro privilegiado com a mensagem de Cristo. Pois todas as culturas « são um esforço de reflexão sobre o mistério do mundo e, em particular, sobre o mistério do homem: é uma maneira de dar expressão à dimensão transcendente da vida humana. O âmago de cada cultura é constituído pela sua aproximação ao mistério mais excelso: o mistério de Deus ».(1) Daqui a importância decisiva de uma pastoral da cultura: « uma fé que não se torna cultura é uma fé não de modo pleno acolhida, não inteiramente pensada e nem com fidelidade vivida ».(2)

O Conselho Pontifício da Cultura quer assim acatar as questões prementes que lhe endereçou o Papa João Paulo II: « Deveis ajudar a igreja a responder a estas questões fundamentais para as culturas atuais: como é que a mensagem da Igreja é acessível às novas culturas, às formas atuais da inteligência e da sensibilidade? Como é que a Igreja de Cristo pode fazer-se compreender pelo espírito moderno, tão orgulhoso com as suas realizações e ao mesmo tempo tão inquieto com o futuro da família humana?


I   FÉ E CULTURA: 

LINHAS DE ORIENTAÇÃO

 Mensageira de Cristo, Redentor do homem, a Igreja em nosso tempo tomou uma consciência renovada da dimensão cultural da pessoa e das comunidades humanas. O Concílio Vaticano II, em particular a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje e o Decreto sobre a atividade missionária da Igreja, os Sínodos dos Bispos, sobre a evangelização no mundo moderno e sobre a catequese em nosso tempo, prolongados pelas Exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi de Paulo VI e Catechesi Tradendae de João Paulo II, propõem a este respeito um rico ensinamento, particularizado pelas Assembléias especiais sucessivas, continente por continente, do Sínodo dos Bispos e as Exortações apostólicas pós-sinodais do Santo Padre. A inculturação da fé foi objeto de uma profunda reflexão por parte da Pontifícia Comissão Bíblica (4) e da Comissão Teológica Internacional.(5) O Sínodo extraordinário de 1985, por ocasião do vigésimo aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II, retomado por João Paulo II na encíclica Redemptoris Missio, apresenta-a como uma « íntima transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo, e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas » (n. 52). O Papa João Paulo II, em vários discursos feitos nas suas viagens apostólicas, bem como as Conferências gerais do Episcopado latino-americano em Puebla e Santo Domingo,(6) atualizaram e particularizaram esta nova dimensão da pastoral da Igreja em nosso tempo, para ir ao encontro dos homens na sua própria cultura.

Um exame atento dos diferentes campos culturais propostos neste documento mostra a vastidão do que representa a cultura, este modo particular pelo qual os homens e os povos cultivam a sua relação com a natureza e com os seus irmãos, consigo mesmos e com Deus, a fim de chegar a uma existência plenamente humana (cf. Gaudium et Spes, n. 53). Não há cultura que não seja do homem, pelo homem e para o homem. Ela é toda a atividade do homem, a sua inteligência e a sua afetividade, a sua busca de sentido, os seus costumes e as suas referências éticas. A cultura é tão natural ao homem, que a sua natureza não tem nenhum aspecto que não se manifeste na sua cultura. A missão de uma pastoral da cultura é restituir ao homem a sua plenitude de criatura « à imagem e semelhança de Deus » (Gn 1, 26), subtraindo-o à tentação antropocêntrica de se considerar independente do Criador. Conseqüentemente, e esta observação é essencial para uma pastoral da cultura, « não se pode negar que o homem sempre existe dentro de uma cultura particular, mas também não se pode negar que o homem não se esgota nesta mesma cultura. De resto, o próprio progresso das culturas demonstra que, no homem, existe algo que transcende as culturas. Este algo é precisamente a natureza do homem: esta natureza é exatamente a medida da cultura, e constitui a condição para que o homem não seja prisioneiro de nenhuma das suas culturas, mas afirme a sua dignidade pessoal pelo viver conforme à verdade profunda do seu ser » (Veritatis Splendor, n. 53).

A cultura, na sua relação essencial com a verdade e com o bem, não brotará apenas da fonte da experiência das necessidades, dos centros de interesse ou das exigências elementares. « A dimensão primeira e fundamental da cultura é a sã moralidade: a cultura moral ».(7) « Na verdade, quando as culturas estão profundamente radicadas na natureza humana, contêm em si mesmas o testemunho da abertura, própria do homem, ao universal e à transcendência » (Fides et Ratio, n. 70). As culturas, marcadas na sua própria tendência de realização pela dinâmica dos homens e da sua história (cf. Ibid., n. 71), partilham também do seu pecado, e requerem, por isso, o necessário discernimento dos cristãos. Quando o Verbo de Deus assume na Encarnação a natureza humana na sua dimensão histórica e concreta, excetuado o pecado (Hb4, 15), ele a purifica e a leva a sua plenitude no Espírito Santo. Ao se revelar, Deus abre o seu coração aos homens, « por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si » e lhes faz descobrir na sua linguagem de homens os mistérios do seu Amor, « para os convidar e admitir a participarem da sua comunhão » (Dei Verbum, n. 2).


A Boa Nova do Evangelho para as culturas

 Para se revelar, entrar em diálogo com os homens e chamá-los à salvação, Deus escolheu, na rica variedade das culturas milenares nascidas do gênio humano, um Povo cuja cultura originária Ele penetrou, purificou e fecundou. A história da Aliança é história do surgimento de uma cultura inspirada pelo próprio Deus ao seu Povo. As Sagradas Escrituras são o instrumento querido e utilizado por Deus para se revelar, o que a eleva a um plano sobrenatural. « Para escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham » (Dei Verbum, n. 11). Na Sagrada Escritura, Palavra de Deus, que constitui a inculturação originária da fé no Deus de Abraão, Deus de Jesus Cristo, « as palavras de Deus, expressas em línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana » (Ibid., n. 13). A mensagem da Revelação, inscrita na História sagrada, apresenta-se sempre revestida de um invólucro cultural do qual ela é indissociável, pois ela é sua parte integrante. A Bíblia, Palavra de Deus expressa na linguagem dos homens, constitui o arquétipo do encontro fecundo entre a Palavra de Deus e a cultura.
A este propósito, a vocação de Abraão é significativa: « Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai » (Gn 12, 1). « Foi pela fé que Abraão, respondendo ao chamado, obedeceu e partiu para uma terra que devia receber como herança, e partiu sem saber para onde ia. Foi pela fé que residiu como estrangeiro na terra prometida, morando em tendas... Pois esperava a cidade que tem fundamentos, cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus » (Hb 11, 8-10). A história do Povo de Deus começa por uma adesão de fé que é também uma ruptura cultural para culminar na Cruz de Cristo, também uma ruptura, elevação da terra, mas simultaneamente centro de atração que dirige a história do mundo para o alto e congrega na unidade os filhos de Deus dispersos: « Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim » (Jo 12, 32).

A ruptura cultural pela qual se inaugura a vocação de Abraão, « Pai dos crentes », traduz aquilo que ocorre no mais profundo do coração do homem quando Deus irrompe na sua existência, para se revelar e propor-lhe o empenho de todo o seu ser. Abraão é espiritualmente e culturalmente desenraizado para ser, na fé, plantado por Deus na Terra Prometida. Esta ruptura sublinha a fundamental diferença de natureza entre a fé e a cultura. Ao contrário dos ídolos que são o produto de uma cultura, o Deus de Abraão é o Totalmente Outro. É pela Revelação que Ele entra na vida de Abraão. O tempo cíclico das religiões antigas teve o seu fim: com Abraão e o povo judeu começa um novo tempo que se torna a história dos homens em marcha para Deus. Não é mais um povo que fabrica para si um deus, é Deus que dá origem ao seu Povo, tornando-o Povo de Deus.

A cultura bíblica ocupa um lugar único: cultura do Povo de Deus, no coração do qual Ele se encarnou. A Promessa feita a Abraão culmina na glorificação de Cristo crucificado. O Pai dos crentes, aspirando pelo cumprimento da Promessa, anuncia o sacrifício do Filho de Deus sobre o madeiro da Cruz. No Cristo que vem recapitular o conjunto da criação, o Amor de Deus chama todos os homens a partilhar da condição de filhos. O Deus Totalmente Outro se manifesta em Jesus Cristo como Totalmente Nosso: « O Verbo do Eterno Pai, tomando a fraqueza da carne humana, se tornou semelhante aos homens » (Dei Verbum, n. 13). A fé também tem o poder de atingir o coração de toda cultura, para purificá-la, fecundá-la, enriquecê-la e dar-lhe a possibilidade de se desenvolver à medida sem medida do amor de Cristo. Cristo cria uma cultura cujos dois constitutivos fundamentais são, a um título totalmente novo, a pessoa e o amor. O amor redentor de Cristo revela, para além dos limites naturais das pessoas, o seu valor profundo, que desabrocha sob o regime da Graça, Dom de Deus. Cristo é a fonte desta civilização do amor, da qual os homens carregam a nostalgia, depois da queda original no jardim do Éden, e que João Paulo II, depois de Paulo VI, não cessa de nos convocar a realizar concretamente com todos os homens de boa vontade. Porque o compromisso fundamental do Evangelho, isto é do Cristo e da Igreja, com o homem na sua humanidade, é criador de cultura no seu fundamento mesmo. Ao viver o Evangelho, dois milênios de história o testemunham, a Igreja esclarece o sentido e o valor da vida, alarga os horizontes da razão e fortalece os fundamentos da moral humana, A fé cristã autenticamente vivida revela em toda a sua profundidade a dignidade da pessoa e a sublimidade da sua vocação (cf. Redemptor Hominis, n. 10). Desde as origens, o Cristianismo se distingue pela inteligência da fé e pela audácia da razão. Testemunham-no pioneiros como S. Justino e S. Clemente de Alexandria, Orígenes, os Padres Capadócios, o encontro entre o pensamento platônico e neoplatônico e S. Agostinho, depois a integração da filosofia de Aristóteles efetuada por S. Tomás, sem esquecer S. Anselmo, S. Alberto Magno e S. Boaventura, até à época contemporânea ilustrada por Newman e Rosmini, Edith Stein e Vladimir Soloviev, Pavel Florensky e Vladimir Lossky evocados pelo Papa João Paulo II na sua encíclica Fides et Ratio (cf. n. 36-48). « O encontro da fé com as diversas culturas deu vida a uma nova realidade » (Ibid., n. 70), ela criou assim uma cultura original, nos contextos mais diversos.


II   DESAFIOS E FUNDAMENTOS

Uma nova época da história humana (Gaudium et Spes, n. 54)

 As condições de vida do homem moderno nestes últimos decênios do segundo milênio transformaram-se tão profundamente, que o Concílio Vaticano II não hesita em falar de « uma nova época da história humana » (Gaudium et Spes, n. 54). Para a Igreja, é um kairós, tempo favorável para uma nova evangelização, onde os novos traços da cultura constituem desafios e fundamentos para uma pastoral da cultura.

A Igreja, em nosso tempo, tem disso uma viva consciência, sob o impulso dos Papas que desenvolveram e atualizaram a doutrina social da Igreja, da Rerum Novarum em 1891, àCentesimus Annus em 1991. As Conferências Episcopais, suas federações e os Sínodos dos Bispos se inspiraram nela para iniciativas práticas adequadas às situações peculiares dos diversos países. No seio desta diversidade, afirmam-se entretanto alguns traços dominantes.

Na situação cultural hoje preponderante em diferentes partes do mundo, o subjetivismo prevalece como medida e critério de verdade (cf. Fides et Ratio, n. 47). Os pressupostos positivistas sobre o progresso da ciência e da tecnologia são postos em questão. Após o fracasso espetacular do marxismo-leninismo coletivista e ateu, a ideologia rival, o liberalismo, revela sua incapacidade em fazer a felicidade do gênero humano, na dignidade responsável de cada pessoa. Um ateísmo prático antropocêntrico, a indiferença religiosa apregoada, um materialismo hedonista agressivo marginalizam a fé como algo evanescente, sem consistência nem pertinência cultural, no seio de uma cultura « prevalentemente científica e técnica » (Veritatis Splendor, n. 112). « Na verdade, os critérios de juízo e de escolha assumidos pelos mesmos crentes apresentam-se freqüentemente, no contexto de uma cultura amplamente descristianizada, como alheios ou até mesmo contrapostos aos do Evangelho » (Ibid., n. 88). O Papa João Paulo II o recordava ao celebrar o vigésimo quinto aniversário da Constituição conciliar sobre a liturgia: « A adaptação às culturas exige também uma conversão do coração e, se for necessário, mesmo a ruptura com hábitos ancestrais incompatíveis com a fé católica. Ora tudo isto requer uma séria formação teológica, histórica e cultural, bem como um são critério para discernir aquilo que é necessário ou útil daquilo que é inútil ou até mesmo perigoso para a fé » (Vicesimus quintus annus, n. 16).

Urbanização galopante e desenraizamento cultural

 Provocado por diversos fatores, como a pobreza ou o subdesenvolvimento das zonas rurais desprovidas dos bens e serviços básicos, mas também, em certos países, por causa dos conflitos armados que obrigam milhões de seres humanos a deixar o seu ambiente familiar e cultural, dá-se atualmente um impressionante êxodo rural que tende a fazer crescer desmesuradamente os grandes centros urbanos. A essas pressões de ordem econômica e social, se ajunta o fascínio da cidade, do bem-estar e do divertimento que ela oferece e cujas imagens são transmitidas pelos meio de comunicação social. Por falta de planejamento, os arrabaldes ou subúrbios dessas megalópoles tornam-se freqüentemente uma espécie de guetos, aglomerações enormes de pessoas socialmente desenraizadas, politicamente carentes, economicamente marginalizadas e culturalmente isoladas.

O desenraizamento cultural, cujas causas são múltiplas, faz aparecer por contraste o papel fundamental das raízes culturais. O homem desestruturado pelo enfraquecimento ou pela perda da sua identidade cultural torna-se um terreno privilegiado para práticas desumanizantes. Nunca como neste século XX o homem manifestou tantas capacidades e talentos, mas nunca também a história conheceu tantas negações e violações da dignidade humana, frutos amargos da negação ou do esquecimento de Deus. Com os valores relegados à esfera privada, a vida moral apresenta-se alterada e a vida espiritual debilitada. O terrível conceito de « cultura de morte » estigmatiza uma contracultura que demonstra de modo evidente a sinistra contradição entre uma vontade afirmada de vida e a rejeição obstinada de Deus, fonte de toda vida (cf. Evangelium Vitae, n. 11-12 e 19-28).

« Evangelizar a cultura urbana constitui um desafio formidável para a Igreja, que, assim como soube ao longo dos séculos evangelizar a cultura rural, da mesma forma é também chamada hoje a levar a cabo uma evangelização urbana metódica e capilar através da catequese, da liturgia e do modo mesmo de organizar as sua estruturas pastorais » (Ecclesia in America, n. 21).

Meios de comunicação social e tecnologia da informação

 « O primeiro areópago dos tempos modernos é o mundo das comunicações, que está a unificar a humanidade, transformando-a como se costuma dizer na "aldeia global". Os meios de comunicação social alcançaram tamanha importância que são para muitos o principal instrumento de informação e formação, de guia e inspiração dos comportamentos individuais, familiares e sociais... A própria evangelização da cultura moderna depende, em grande parte, da sua influência... É necessário integrar a mensagem nesta "nova cultura", criada pelas modernas comunicações. É um problema complexo, pois esta cultura nasce, menos dos conteúdos do que do próprio fato de existirem novos modos de comunicar com novas linguagens, novas técnicas, novas atitudes psicológicas » (Redemptoris Missio, n. 37). O advento desta verdadeira revolução cultural, com a transformação da linguagem causada especialmente pela televisão e pelos modelos que ela propõe, acarreta « a transformação completa de tudo o que é necessário à humanidade para compreender o mundo que a envolve e para verificar e expressar a percepção do mesmo... Com efeito, tanto se pode recorrer aos mass media para proclamar o Evangelho, como para o afastar do coração do homem ».(12) Os mass media que dão acesso à informação « ao vivo » suprimem o recuo da distância e do tempo, mas sobretudo transformam a apreensão das coisas: a realidade cede lugar àquilo que é exibido por estes meios. Então, a repetição contínua de informações selecionadas torna-se um fator determinante na criação daquela que passa a ser considerada « opinião pública ».

A influência dos media que representam as fronteiras, em particular no campo da publicidade,(13) exige dos cristãos uma nova criatividade para atingir as centenas de milhões de pessoas que consagram quotidianamente um tempo importante à televisão e ao rádio, meios de informação e de promoção cultural, mas também de evangelização para aqueles a quem faltam ocasiões para entrar em contato com o Evangelho e com a Igreja nas sociedades secularizadas. A pastoral da cultura deve dar uma resposta positiva à questão crucial apresentada por João Paulo II: « Existe, contudo, um lugar para Cristo nos mass media tradicionais? ».(14)

A mais surpreendente das inovações na tecnologia da comunicação é sem dúvida a redeInternet. Como toda técnica nova, não deixa de suscitar temores, tristemente justificados por usos perversos, e exige uma constante vigilância e uma séria informação. Não se trata somente da moralidade do seu uso, mas das conseqüências radicalmente novas que ela acarreta: perda do « peso específico » das informações, nivelamento das mensagens reduzidas a não ser mais que pura informação, ausência de reações concernentes às mensagens da rede por parte das pessoas responsáveis, efeito dissuasivo quanto às relações interpessoais. Mas, sem nenhuma dúvida, as imensas potencialidade da Interne podem fornecer um auxílio considerável à difusão da Boa Nova, como testemunham certas iniciativas eclesiais promissoras, que exigem um desenvolvimento criativo e responsável nesta « nova fronteira da missão da Igreja » (cf.Christifideles Laici, n. 44).

Esta área da comunicação é importantíssima. Como não estar presentes e utilizar as redes informáticas, cujos monitores estarão de agora em diante em cada casa, para incluir ali os valores da mensagem evangélica?

Identidades e minorias nacionais

 As tragédias que marcaram o século XX e afligem ainda hoje milhões de pessoas pelo mundo afora, demonstram como o campo da identidade cultural e sua evangelização são um fator decisivo para o futuro da Igreja e da sociedade. Se a sua unidade de natureza constitui todos os homens membros de uma única grande comunidade, o caráter histórico da condição humana faz-lhes necessariamente ligados de modo mais intenso a grupos particulares: desde a família até às nações. A condição humana é colocada assim entre estes dois pólos o universal e o particular em tensão vital particularmente fecunda, se é vivida no equilíbrio e na harmonia. O fundamento dos direitos das nações não é outro que a pessoa humana. Neste sentido, estes direitos não são nada mais que os direitos do homem considerados a este nível específico da vida comunitária. O primeiro destes direitos é o direito à existência. « Ninguém nem um Estado, nem outra nação, nenhuma organização internacional pode jamais considerar legitimamente que uma particular nação não é digna de existir ».(15) O direito à existência implica naturalmente, para cada nação, o direito à sua própria língua e à sua cultura. É através delas que um povo exprime e defende sua soberania singular.

Se os direitos da nação traduzem as exigências da particularidade, é importante também sublinhar as exigências da universalidade, com os deveres que dela resultam para cada nação com relação às outras e para com toda a humanidade. O primeiro de todos é sem dúvida nenhuma o dever de viver em uma atitude de paz, respeitosa e solidária às outras nações. Formar as novas gerações para viver sua própria identidade na diversidade é uma tarefa prioritária da educação à cultura, dado que freqüentemente grupos de pressão não deixam de utilizar a religião para fins políticos que lhe são estranhos. Ao mesmo tempo, a pastoral da cultura apoia-se sobre o Dom do Espírito de Jesus e do seu amor que « são destinados a todos e cada um dos povos e culturas para os unir entre si à imagem daquela perfeita união que existe em Deus Uno e Trino » (Ecclesia in America, n. 70).

Ao contrário do nacionalismo carregado de desprezo, e até mesmo de aversão às outras nações e culturas, o patriotismo é o amor e o serviço legítimos, privilegiados, mas não exclusivos, ao seu próprio país e à sua cultura, distante tanto do cosmopolitismo quanto do nacionalismo cultural. Cada cultura é aberta ao universal naquilo que tem de melhor. Ela é chamada também a se purificar da sua parte na herança de pecado, inscrita em certos preconceitos, costumes e práticas opostas ao Evangelho, a enriquecer-se com o contributo da fé e a « enriquecer a própria Igreja universal com novas expressões e valores » (cf. Redemptoris Missio, n. 52 eSlavorum Apostoli, n. 21).


Novos areópagos e campos culturais tradicionais

Ecologia, ciência, filosofia e bioética

 Uma nova tomada de consciência afirma-se com o desenvolvimento da ecologia. Esta não é uma novidade para a Igreja: a luz da fé ilumina o sentido da criação e as relações entre o homem e a natureza. São Francisco de Assis e são Filipe Néri são as testemunhas símbolo do respeito à natureza contido na visão cristã do mundo criado. Este respeito encontra sua fonte no fato de que a natureza não é propriedade do homem; ela pertence a Deus, seu Criador, que confiou-lhe a sua administração (Gn 1, 28) para que ele a respeite e nela encontre a sua legítima subsistência (cf. Centesimus Annus, n. 38-39).

A vulgarização dos conhecimentos científicos conduz freqüentemente o homem a situar-se na imensidão do cosmos e a extasiar-se diante de suas próprias capacidades e diante do universo, sem pensar de jeito nenhum que Deus é o seu autor. Daqui o desafio, para a pastoral da cultura, de conduzir o homem para a transcendência, de ensinar-lhe a percorrer de novo o caminho que parte de sua experiência intelectual e humana, para desembocar no conhecimento do Criador, utilizando com sabedoria as melhores aquisições das ciências modernas, à luz da reta razão. Embora a ciência, pelo seu prestígio, impregne fortemente a cultura contemporânea, ela não consegue apreender aquilo que constitui na sua substância a experiência humana, nem a realidade mais intrínseca das coisas. Uma cultura coerente, fundada sobre a transcendência e a superioridade do espírito em face da matéria, requer uma sabedoria onde o conhecimento científico se desenvolva em um horizonte iluminado pela reflexão metafísica. No plano do conhecimento fé e ciência não se sobrepõem uma à outra, e convém não confundir os seus princípios metodológicos, mas distinguir para unir e reencontrar, para além da dispersão causada pela subdivisão do saber em campos fechados, esta síntese harmoniosa e o sentido unificador da totalidade que caracterizam uma cultura plenamente humana. Em nossa cultura fragmentada que custa a integrar a abundante acumulação de conhecimentos, as maravilhosas descobertas das ciências e as notáveis contribuições das modernas técnicas, a pastoral da cultura requer como pressuposto uma reflexão filosófica que se ocupe de organizar e estruturar o conjunto dos conhecimentos e fortaleça, ao fazê-lo, a capacidade de verdade da razão e sua função reguladora da cultura.

« A subdivisão do saber, enquanto comporta uma visão parcial da verdade com a conseqüente fragmentação do seu sentido, impede a unidade interior do homem de hoje. Como poderia a Igreja deixar de preocupar-se? Os Pastores recebem esta função sapiencial diretamente do Evangelho, e não podem eximir-se do dever de concretizá-la » (Fides et Ratio, n. 85).

 É também a tarefa dos filósofos teólogos qualificados, em condições de abordar com competência a cultura científica e tecnológica dominante, de identificar os desafios e os fundamentos para o anúncio do Evangelho. Esta exigência implica uma renovação do ensino filosófico e teológico, pois a condição de todo diálogo e de toda inculturação está numa teologia plenamente fiel ao dado de fé. A pastoral da cultura tem igual necessidade de cientistas católicos que sintam como que um dever de fornecer sua contribuição própria à vida da Igreja, já que faz parte de sua experiência pessoal o encontro entre ciência e fé. O déficit de qualificação teológica e de competência científica prejudica a eficácia da presença da Igreja no coração da cultura derivada das pesquisas científicas e de suas aplicações técnicas. E no entanto nós vivemos um período particularmente favorável ao diálogo entre ciência e fé.(16).

 A ciência e a técnica dispõem de maravilhosos meios para aumentar o saber, o poder e o bem-estar dos homens, mas a sua utilização responsável implica a dimensão ética das questões científicas. Freqüentemente colocadas pelos próprios estudiosos em busca da verdade, estas questões evidenciam a necessidade de um diálogo entre ciência e moral. Esta busca da verdade que transcende a experiência dos sentidos, oferece novas possibilidades para uma pastoral da cultura dirigida ao anúncio do Evangelho nos meios científicos.

É de todo evidente, e sua vastidão o testemunha, que a bioética é bem mais que uma disciplina do saber, ela tem incidências culturais, sociais, políticas e jurídicas, às quais a Igreja atribui a Maior importância. Com efeito, a evolução da legislação no campo da bioética depende da escolha das referências éticas às quais recorre o legislador. A questão de fundo permanece, com o seu caráter severo: quais devem ser as relações entre normas morais e lei civil em uma sociedade pluralista? (cf. Evangelium Vitae, n. 18 e 68-74). Ao submeter as questões éticas fundamentais a legisladores sucessivos, não se corre o risco de erigir em direito algo que moralmente seria inaceitável?

A bioética é um dos campos evidentes que convidam a remontar aos fundamentos da antropologia e da vida moral. O papel dos cristãos é insubstituível para contribuir na formação, no seio da sociedade, num diálogo respeitoso e exigente, de uma consciência ética e um sentido cívico. Esta situação cultural exige uma formação rigorosa tanto para os presbíteros quanto para os leigos que agem neste campo crucial da bioética.

A família e a educação

 « A família, comunidade de pessoas, é, pois, a primeira sociedade humana. Ela surge no momento em que se realiza a aliança do matrimônio, que abre os cônjuges a uma perene comunhão de amor e de vida, e completa-se plenamente e de modo específico com a geração dos filhos: a comunhão dos cônjuges dá início à comunidade familiar » (Carta às famílias, 1994, n. 7).

Berço da vida e do amor, a família é também fonte de cultura. Ela acolhe a vida e é esta escola de humanidade onde os futuros cônjuges melhor aprendem a se tornarem pais responsáveis. O processo de crescimento, que ela assegura em uma comunidade de vida e de amor, ultrapassa em certas civilizações o núcleo parental, para constituir, por exemplo, a grande família africana. E mesmo quando a miséria material, cultural e moral mina a instituição mesma do matrimônio e ameaça secar as fontes da vida, a família nem por deixa de ser o lugar privilegiado de formação da pessoa e da sociedade. A experiência o demonstra: o conjunto das nações e a coesão dos povos dependem, acima de tudo, da qualidade humana das famílias, principalmente da presença complementar dos dois genitores, com os papéis respectivos do pai e da mãe na educação dos filhos. Numa sociedade onde cresce o número dos sem-família, a educação torna-se mais difícil, como a transmissão de uma cultura popular modelada pelo Evangelho.

As situações pessoais dolorosas merecem compreensão, caridade e solidariedade, mas em nenhum caso aquilo que é fracasso trágico da família poderá ser apresentado como novo modelo de vida social. As campanhas de opinião e as políticas antifamiliares ou antinatalistas são tentativas de modificar o conceito mesmo de « família », até esvaziá-lo de sua substância. Neste contexto, formar uma comunidade de vida e de amor que une os cônjuges associando-os ao Criador constitui o melhor testemunho que as famílias cristãs possam dar à sociedade.

 Mais que em qualquer outra época, o papel específico da mulher nas relações interpessoais e sociais desperta reflexões e iniciativas. Em numerosas sociedades contemporâneas marcadas por uma mentalidade « antifilho », o cuidado dos filhos é com freqüência considerado como um obstáculo à autonomia e às possibilidades de afirmação da mulher, o que obscurece o rico significado da maternidade bem como da personalidade feminina. Fundada sobre a mensagem da Revelação bíblica, promovida a despeito dos acasos da história e da cultura das nações cristãs, a igualdade fundamental do homem e da mulher criados por Deus à sua imagem (Gn 1, 27) e ilustrada pelo patrimônio artístico secular da Igreja, chama a pastoral da cultura a levar em conta a profunda transformação da condição feminina em nosso tempo: « Em tempos recentes, algumas correntes do movimento feminista, no intento de favorecer a emancipação da mulher, tiveram em vista assemelhá-la em tudo ao homem. Mas a intenção divina manifestada na criação, embora quisesse a mulher igual ao homem por dignidade e valor, afirma-lhe contemporaneamente com clareza a diversidade e a especificidade. A identidade da mulher não pode consistir em ser uma cópia do homem ».(17) As especificidades próprias de cada um dos sexos se unem em uma colaboração recíproca que leva a um enriquecimento mútuo e onde as mulheres são as primeiras artesãs de uma sociedade mais humana.

 « Tarefa primeira e essencial de toda a cultura »,(18) a educação que é, desde a Antigüidade cristã, um dos mais destacados campos de ação pastoral da Igreja, tanto no plano religioso e cultural quanto no plano pessoal e social, é mais do que nunca complexa e crucial. Ela é fundamentalmente responsabilidade das famílias, mas tem necessidade da colaboração de toda a sociedade. O mundo de amanhã depende da educação de hoje, e esta não pode se reduzir à mera transmissão de conhecimentos. Ela forma as pessoas e as prepara para se integrar na vida social, promovendo o seu amadurecimento psicológico, intelectual, cultural, moral e espiritual.

O desafio de anunciar o Evangelho às crianças e aos jovens, da escola à universidade, exige também um projeto educativo apropriado. A educação no seio da família, na escola ou na universidade « não só constrói uma relação profunda entre educador e educando, mas fá-los ambos participar na verdade e no amor, meta final à qual cada homem é chamado por Deus Pai, Filho e Espírito Santo » (Carta às famílias, n. 16). Ela prepara para viver relações fundadas sobre o respeito dos direitos e dos deveres. Ela prepara para viver em um espírito de acolhimento e de solidariedade, para exercer um uso moderado da propriedade e dos bens, a fim de garantir justas condições de existência para todos e em toda a parte. O futuro da humanidade passa pelo desenvolvimento integral e solidário de cada pessoa: todo homem e o homem todo (cf. Populorum Progressio, n. 42). Assim, família, escola e universidade são chamadas, cada uma na sua ordem, a inserir o fermento evangélico nas culturas do Terceiro Milênio.

Arte e lazer

 Numa cultura cada vez mais marcada pelo primado do ter, pela obsessão da satisfação imediata, pela ilusão das compensações materiais, a busca do lucro, é surpreendente constatar não somente a permanência, mas o desenvolvimento de um interesse pelo belo. As formas de que se reveste este interesse parecem traduzir a aspiração que se mantém, e até mesmo se reforça, a um algo mais que encante a existência, abra-a e a conduza para além dela mesma. A Igreja teve intuição disto desde a origem e séculos de arte cristã dão disso uma ilustração magnífica: a obra de arte autêntica é potencialmente uma porta de entrada para a experiência religiosa. Reconhecer a importância da arte para inculturar o Evangelho, é reconhecer que o gênio e a sensibilidade do homem são conaturais à verdade e à beleza do mistério divino. A Igreja manifesta um profundo respeito por todos os artistas, sem fazer acepção de suas convicções religiosas, pois a obra artística porta em si como que uma marca do invisível, mesmo se, como qualquer atividade humana, a arte não tenha em si mesma o seu fim absoluto: ela é ordenada à pessoa humana.

Os artistas cristãos constituem para a Igreja uma potencialidade extraordinária para aprimorar novas fórmulas e elaborar novos símbolos ou metáforas, Na exuberância gênio litúrgico dotado de uma poderosa força criativa, radicada ha tantos séculos nas profundezas do imaginário católico, com sua capacidade de exprimir a onipresença da graça. Em cada continente não faltam os artistas cuja inspiração cristã é capaz de atrair fiéis de todas as religiões, bem como os não-crentes, pela irradiação do belo e do verdadeiro. Através dos artistas cristãos o Evangelho, fonte fecunda de inspiração, atinge numerosas pessoas desprovidas de contato com a mensagem de Cristo.

Ao mesmo tempo, o patrimônio cultural da Igreja testemunha uma fecunda integração entre cultura e fé. Ele constitui um recurso permanente para uma educação cultural e catequética, que une a verdade da fé à autêntica beleza da arte (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 122-127). Frutos de uma comunidade cristã que viveu e vive intensamente sua fé na esperança e na caridade, estes bens cultuais e culturais da Igreja estão aptos a inspirar a existência humana e cristã no alvorecer do Terceiro Milênio.

O mundo do lazer e do desporto, das viagens e do turismo, juntamente com o do trabalho, constitui sem dúvida uma dimensão importante da cultura onde a Igreja está presente há muito tempo. Portanto este vem a ser também um dos areópagos da pastoral da cultura. A cultura do « trabalho » passa por profundas transformações que não deixam de ter conseqüências sobre o lazer e as atividades culturais. O trabalho, que para a grande Maioria é o meio de procurar o pão cotidiano (cf. Laborem Exercens, n. 1), é também um dos meios de responder ao desejo cada vez mais afirmado de desenvolvimento pessoal, ao mesmo título que as atividades culturais. Todavia, num contexto de especialização, de grande desenvolvimento tecnológico e econômico, as novas formas de organização do trabalho freqüentemente trazem consigo o aumento do desemprego em todas as camadas da sociedade, o qual é causa não só de miséria material, mas também semeia nas culturas dúvida, insatisfação, humilhação, às vezes até mesmo delinqüência. A precariedade das condições de vida e a necessidade de prover ao necessário levam muitas vezes a considerar a cultura artística e literária como um supérfluo reservado a uma elite privilegiada.

desporto, que se tornou quase universal, tem sem nenhuma dúvida o seu lugar em uma visão cristã da cultura, e pode favorecer ao mesmo tempo a saúde física e as relações interpessoais, pois ele cria laços e contribui para forjar um ideal. Mas ele pode também ser desnaturado pelos interesses comerciais, tornar-se o veículo de rivalidades nacionais ou raciais, dar lugar a explosões de violência que revelam as tensões e as contradições da sociedade, e transformar-se, então, em anticultura. Ele é também um lugar importante para uma moderna pastoral da cultura. Realidade multiforme e complexa, simultaneamente carregada de símbolos e de interesses comerciais, o lazer e o desporto criam não só uma atmosfera, mas como que uma cultura, um modo de ser, um sistema de referências. Uma pastoral adaptada saberá discernir aí os autênticos valores educativos, como um meio para celebrar as riquezas do ser criado a imagem de Deus, e, a exemplo do apóstolo Paulo, anunciar a salvação em Cristo (cf. 1 Cor 9, 24-27).

Diversidade cultural e pluralidade religiosa

 Em nossos dias, a missão evangelizadora da Igreja é exercida em um mundo caracterizado pela diversidade de situações culturais modeladas por diferentes paradigmas religiosos. Neste momento em que os contatos interculturais e inter-religiosos se aceleram no seio da aldeia global, este fenômeno toca todos os continentes e todos os países.

A Assembléia especial do Sínodo dos Bispos para a África pôs isto em relevo. Nesse continente, as religiões tradicionais que encontram o Cristianismo e o Islão permanecem bem vivas, e impregnam a cultura e a vida das pessoas e das comunidades. Se os valores culturais positivos dessas religiões nem sempre foram suficientemente levados em conta no início da evangelização, a Igreja, particularmente depois do Concílio Vaticano II, promove aqueles que estão em harmonia com o Evangelho e preparam o caminho da conversão a Cristo. « Os africanos têm um profundo senso religioso, o sentido do sagrado, da existência de Deus criador e de um mundo espiritual. A realidade do pecado nas suas formas individuais e sociais estão muito presentes na consciência daqueles povos, e sente-se também igualmente a necessidade de ritos de purificação e expiação » (Ecclesia in Africa, n. 30-37, 42). Os valores positivos transmitidos pelas culturas tradicionais, tais como o sentido da família, o amor e o respeito à vida, o respeito aos anciãos e a veneração dos ancestrais, o sentido da solidariedade e da vida comunitária, o respeito ao chefe, a dimensão celebrativa da vida, são fundamentos sólidos para a inculturação da fé, pela qual o Evangelho penetra todos os aspectos da cultura levando-os ao seu pleno desenvolvimento (cf. Ibid., n. 59-62). Entretanto, as atitudes contrárias ao Evangelho, inspiradas por essas tradições, serão resolutamente combatidas pela força da Boa Nova do Cristo Salvador, portadora das Bem-aventuranças evangélicas (Mt 5, 1-12).

 Imensas regiões do mundo, particularmente na Ásia, terras de antigas culturas, são profundamente marcadas por religiões e sabedorias não-cristãs, tais como o Hinduísmo, o Budismo, o Taoísmo, o Shintoísmo, o Confucionismo, que merecem uma atenta consideração. A mensagem de Cristo suscita ali poucas respostas. Não será isto porque o cristianismo é percebido ali freqüentemente como uma religião estrangeira, insuficientemente inserida, assimilada e vivida nas culturas locais? Daí a vastidão de uma pastoral da cultura neste contexto específico.

Numerosas realidades morais e espirituais, e até mesmo místicas, tais como a santidade, a renúncia, a castidade, a virtude, o amor universal, o amor à paz, a oração e a contemplação, a felicidade em Deus, a compaixão, vividos nestas culturas, são aberturas para a fé no Deus de Jesus Cristo. O Papa João Paulo II o recorda: « Compete aos cristãos de hoje, sobretudo aos da Índia, a tarefa de extrair deste rico patrimônio os elementos compatíveis com a sua fé, para se obter um enriquecimento do pensamento cristão » (Fides et Ratio, n. 72). Expressões do homem em busca de Deus, as culturas do Oriente manifestam, através das diversidades culturais, a universalidade do gênio humano e sua dimensão espiritual (cf. Nostra Aetate, n. 2). Num mundo dominado pela secularização, elas atestam a experiência vivida do divino e a importância do espiritual como núcleo vivo das culturas.

É um gigantesco desafio para a pastoral da cultura acompanhar os homens de boa vontade cuja razão procura a verdade, fundamentando-se nessas ricas tradições culturais, tais como a milenar sabedoria chinesa, e conduzir sua busca do divino a se abrir à Revelação do Deus vivo que, pela graça do Espírito, associa a si o homem em Jesus Cristo, único Redentor.

 Outras grandes regiões a Assembléia especial para a América do Sínodo dos Bispos pô-lo a viva luz vivem de uma cultura profundamente modelada pela mensagem evangélica e, ao mesmo tempo, se encontram sob uma penetrante influência de modos de vida materialistas e secularizados, que se manifesta especialmente no abandono da religião difundido na classe média e entre os homens de cultura.

A Igreja, que afirma a dignidade da pessoa humana, cuida de purificar a vida social das chagas que são a violência, as injustiças sociais, os abusos de que são vítimas as crianças de rua, o tráfico de drogas, etc. Neste contexto e afirmando o seu amor preferencial pelos pobres e excluídos, a Igreja deve promover uma cultura da solidariedade em todos os níveis da vida social: instituições governamentais, instituições públicas e organizações privadas. Abrindo-se a uma Maior união entre as pessoas, entre as sociedades e as nações, ela se associará aos esforços das pessoas de boa vontade para construir um mundo cada vez mais digno da pessoa humana. Ao fazê-lo, ela contribuirá « para a redução dos efeitos negativos da globalização, tais como o domínio dos mais poderosos sobre os mais fracos, especialmente no campo econômico, e a perda dos valores das culturas locais a favor de uma mal entendida homogeneização » (Ecclesia in America, n. 55).

Em nossos dias, a ignorância religiosa endêmica favorece diferentes formas de sincretismo entre antigas culturas hoje extintas, os novos movimentos religiosos e a fé católica. Os problemas sociais, econômicos, culturais e morais servem de justificação a novas ideologias sincretistas cujos círculos estão ativamente presentes em diversos países. A Igreja pretende ressaltar estes desafios, em particular junto dos mais pobres, promover a justiça social e evangelizar as culturas tradicionais, bem como as novas culturas que emergem das megalópoles.(19)

 Os países penetrados pelo Islão constituem como que um universo cultural com sua configuração própria, se bem que diversificada entre os países árabes e os outros países da África e da Ásia. Pois o Islão se apresenta indissociavelmente como uma sociedade com sua legislação e suas tradições, cujo conjunto constitui uma vasta comunidade, uma, com a sua cultura própria e o seu projeto de civilização.

O Islão conhece atualmente uma grande expansão, devida especialmente aos movimentos migratórios provenientes de países com grande crescimento demográfico. Nos países de tradição cristã, que têm, à exceção da África, um baixo ou até mesmo negativo C crescimento demográfico, percebe-se freqüentemente hoje o aumento da presença de muçulmanos como um desafio social, cultural, e até mesmo religioso. Os imigrados muçulmanos por sua vez passam, ao menos em certos países, por grandes dificuldades de integração sócio-cultural. Aliás, o afastamento de uma comunidade tradicional conduz freqüentemente no Islão como nas outras religiões ao abandono de certas práticas religiosas e a uma crise de identidade cultural. Uma colaboração leal com os muçulmanos no plano cultural pode permitir o estabelecimento em uma efetiva reciprocidade de relações frutuosas nos países islâmicos, bem como com as comunidades muçulmanas estabelecidas nos países de tradição cristã. Uma tal cooperação não dispensa os cristãos de dar conta de sua fé cristológica e trinitária em face das outras expressões do monoteísmo.

 As culturas secularizadas exercem uma profunda influência em diversas partes de um mundo marcado pela aceleração e pela complexidade crescente das mudanças culturais. Nascida em países de antiga tradição cristã, esta cultura secularizada, com os seus valores de solidariedade, de dedicação gratuita, de liberdade, de justiça, de igualdade entre o homem e a mulher, de abertura de espírito e de diálogo, e de sensibilidade ecológica. guarda ainda a marca de valores fundamentalmente cristãos que impregnaram a cultura ao longo dos séculos e cuja fecundidade penetrou a própria secularização no processo de civilização e na reflexão filosófica. Às vésperas do terceiro milênio, as questões da verdade, dos valores, do ser e do sentido, ligadas à natureza humana, revelam os limites de uma secularização que suscita, malgrado ela mesma, a procura da « dimensão espiritual da vida como antídoto à desumanização. Este fenômeno, denominado "ressurgimento religioso", não está isento de ambigüidade, mas traz com ele também um convite... Também este é um areópago a evangelizar » (Redemptoris Missio, n. 38).

Quando a secularização se transforma em secularismo (Evangelii Nuntiandi, n. 55), resulta em uma grave crise cultural e espiritual, da qual um dos sinais é a perda do respeito pela pessoa e a difusão de uma espécie de niilismo antropológico que reduz o homem aos seus instintos e tendências. Este niilismo que alimenta uma grave crise da verdade (cf. Veritatis Splendor, n. 32), « de algum modo encontra confirmação na terrível experiência do mal que caracterizou a nossa época. O otimismo racionalista que via na história o avanço vitorioso da razão, fonte de felicidade e de liberdade, não pôde resistir face à dramaticidade de tal experiência, a ponto de uma das Maiores ameaças, neste final de século, ser a tentação do desespero » (Fides et Ratio, n. 91). É dando novamente lugar à razão esclarecida pela fé e reconhecendo Cristo como a solução para a vida do homem, que uma pastoral evangelizadora da cultura poderá reforçar a identidade cristã ajudando as pessoas e as comunidades a reencontrar sua razão de viver, em todos os caminhos da vida, ao encontro do Senhor que vem, e da vida do mundo que há de vir (Ap 21-22).

Os países que redescobriram uma liberdade por muito tempo sufocada pelo marxismo-leninismo ateu no poder, ficaram marcados por uma « desculturação » violenta da fé cristã: as relações entre os homens artificialmente modificadas, a dependência da criatura em relação ao seu Criador negada, as verdades dogmáticas da Revelação cristã e sua ética combatidas. A esta « desculturação » sucedeu um questionamento radical de valores essenciais para os cristãos. Os efeitos redutores do secularismo espalhado na Europa Ocidental no fim dos anos sessenta, contribuem na desestruturação da cultura dos países da Europa central e oriental.

Outros países, de tradicional pluralismo democrático, experimentam, sobre um fundo massificado de adesão social religiosa, o impulso de correntes mescladas de secularismo e de expressões religiosas populares levadas pelos fluxos migratórios. Diante deste fato, a Assembléia especial para a América do Sínodo dos Bispos propôs uma nova tomada de consciência missionária.

Seitas e novos movimentos religiosos (20)A sociedade no seio da qual emerge, sob as formas mais variadas, uma nova busca de espiritualidade, talvez mais que de religião, não deixa de recordar uma das tribunas de São Paulo, o Areópago de Atenas (cf. AA, 17, 22-31). A sede de reencontrar uma dimensão espiritual que seja também fonte de sentido para a vida, bem como o desejo profundo de reconstituir um tecido de relações afetivas e sociais muitas vezes lacerado pela instabilidade crescente da instituição familiar, ao menos em certos países, se traduzem em um novo «revival » no seio do cristianismo, mas também por construções mais ou menos sincretistas orientadas para uma certa união global para além de toda religião particular.

Sob o polissêmico vocábulo seita podem ser colocados numerosos e muito variados grupos, uns de inspiração gnóstica ou esotérica, outros de aparência cristã, outros ainda, em certos casos, hostis a Cristo e à Igreja. O seu aparecimento responde, freqüentemente, a aspirações insatisfeitas. Muitos de nossos contemporâneos encontram aí um lugar de pertença e de comunicação, de afeto e de fraternidade, até mesmo uma aparência de proteção e de segurança. Este sentimento se fundamenta, em grande parte, nas soluções aparentemente luminosas como o « Gospel of success » - mas, de fato, ilusórias que as seitas parecem fornecer às questões mais complexas, como também em uma teologia pragmática muitas vezes baseada na exaltação do « eu » tão maltratado pela sociedade. Freqüentemente, as seitas se desenvolvem graças às suas pretensas respostas às necessidades das pessoas em busca de cura, de filhos, de sucesso econômico. Ocorre o mesmo com as religiões esotéricas cujo êxito se afirma graças à ignorância e à credulidade de cristãos pouco ou mal formados. Em numerosos países, algumas pessoas, feridas pela vida, deixadas a si mesmas, fazem a dolorosa experiência da exclusão, especialmente no anonimato característico da cultura urbana, e estão prontas a tudo aceitar contanto que se beneficiem de uma visão espiritual que lhes restitua a harmonia perdida, e lhes conceda experimentar como que uma sensação de cura física e espiritual. Tudo isto mostra a complexidade e o alcance do fenômeno das seitas, que alia o mal-estar existencial à rejeição da dimensão institucional das religiões, e que se manifesta sob formas e expressões religiosas heterogêneas.

Mas a proliferação das seitas é também uma reação à cultura do secularismo e uma conseqüência das modificações sociais e culturais que fizeram com que se perdessem as raízes religiosas tradicionais. Ir ao encontro das pessoas tocadas pelas seitas ou em perigo de o ser, para anunciar Jesus Cristo que lhes fala ao coração, é um dos desafios que a Igreja deve-se colocar.
Verdadeiramente, de um continente a outro, verifica-se a emergência de uma « nova época da história humana », já percebida pelo Concílio Vaticano II. Esta tomada de consciência exige uma nova pastoral da cultura, que se encarregue de enfrentar estes novos desafios, na convicção que levou João Paulo II a criar o Conselho Pontifício da Cultura: « Daqui a importância para a Igreja... de uma ação pastoral atenta e clarividente, a respeito da cultura, em particular da que é chamada cultura viva, ou seja o conjunto dos princípios e dos valores que formam o ethos de um povo » (Carta Autógrafa, op. cit.).


III   PROPOSTAS CONCRETAS

Religiões e « religiosos »

 Na sua missão de anunciar o Evangelho a todos os homens de todas as culturas, a Igreja encontra as religiões tradicionais, principalmente na África e na Ásia.(22) As Igrejas locais são convidadas e incentivadas a estudar as culturas e as práticas religiosas tradicionais de sua própria região, não para as canonizar, mas para discernir nelas os valores, os costumes e os ritos capazes de favorecer um enraizamento mais profundo do cristianismo nas culturas locais (cf. Ad Gentes, n. 19 e 22).
O « retorno » ou « despertar » da religião no Ocidente exige, seguramente, um sério discernimento. Embora se trate mais freqüentemente de um retorno do sentimento religioso que de uma adesão pessoal a Deus, em comunhão de fé com a Igreja, ninguém poderá no entanto negar que homens e mulheres, em número crescente, voltam a estar atentos a uma dimensão da existência humana que eles caracterizam, conforme o caso, como espiritual, religiosa ou sacra. O fenômeno, que se verifica sobretudo entre os jovens e os pobres o que constitui uma razão suplementar para prestar-lhe atenção, leva-os seja a se voltar para um Cristianismo que os tinha desiludido um pouco, seja a se dirigir para outras religiões, seja mesmo a ceder à solicitação sectária ou ainda às ilusões do ocultismo.
Em todas as partes do mundo, um novo campo de « possíveis » se abre à pastoral da cultura a fim de que o Evangelho de Cristo resplandeça no seu interior. Numerosos são os pontos sobre os quais a fé cristã é chamada a se traduzir e a se exprimir de maneira mais acessível às culturas predominantes, em razão da concorrência mesma à qual a submete o crescimento, ao redor dela, de uma religiosidade difusa e abundante.

A busca do diálogo e a correspondente necessidade de melhor identificar a especificidade cristã representam um campo cada vez mais importante da reflexão e da ação para o anúncio da fé nas culturas. A pastoral da cultura em face do desafio das seitas (cf. Ecclesia in America, n. 73) inscreve-se nesta perspectiva, pois estas produzem efeitos culturais intimamente ligados ao seu discurso « espiritual ». Esta situação exige uma séria reflexão sobre a maneira de viver a tolerância e a liberdade religiosa em nossas sociedades (cf. Dignitatis Humanae, n. 4). Sem dúvida nenhuma, é preciso formar melhor presbíteros e leigos a fim de que eles adquiram competência e discernimento a respeito das seitas e das razões do seu sucesso, sem todavia perder de vista que o verdadeiro antídoto contra as seitas é a qualidade da vida eclesial. Quanto aos presbíteros, é necessário prepará-los, tanto para enfrentar o desafio das seitas quanto para dar assistência aos fiéis em perigo de deixar a Igreja e renegar a sua fé.

Instituições educacionais

 « O mundo da educação é um campo privilegiado para promover a inculturação do Evangelho » (Ecclesia in America, n. 71). A educação que conduz a criança, e depois o adolescente, à sua maturidade, começa no interior da família que permanece o lugar privilegiado da educação. Toda pastoral da cultura e toda a evangelização em profundidade também se apoiam sobre a educação e tomam como base a família, « primeiro espaço educativo da pessoa » (Ibid.).

Mas a família, muitas vezes às voltas com dificuldades as mais diversas, não tem como atender sozinha a todas as exigências educacionais. Daí a grande importância das instituições educacionais. Em muitos países, fiel à sua bimilenária missão de educação e ensino, a Igreja anima numerosas instituições: jardins da infância, escolas, colégios, liceus, universidades, centros de pesquisa. Estas instituições católicas tem por vocação própria colocar os valores evangélicos no interior da cultura. Para o fazer, os responsáveis por estas instituições devem haurir na mensagem do Cristo bem como no ensinamento da Igreja a substância do seu projeto educativo. Todavia, o cumprimento da missão destas instituições depende em grande parte de meios muitas vezes difíceis de reunir. É necessário render-se à evidência para enfrentar o seu desafio: a Igreja deve consagrar uma parte importante do seus recursos em pessoal e em meios para a educação, para responder à missão recebida de Cristo de anunciar o Evangelho. Em todo caso uma exigência permanece: associar a preocupação com uma séria formação escolar àquela com uma profunda formação humana e cristã.(23) Caso contrário, a multidão de jovens que freqüentam o conjunto das instituições de educação dos diversos países, poderão freqüentemente, malgrado a boa vontade e a competência dos mestres, ser plenamente escolarizados, mas parcialmente « desculturados ».

Na perspectiva global de uma pastoral da cultura e dando sempre aos estudantes a formação específica que eles tem o direito de esperar, as universidades, colégios e centros de pesquisa católicos terão a preocupação de assegurar um encontro fecundo entre o Evangelho e as diferentes expressões culturais. Estas instituições saberão contribuir de modo original e insubstituível a uma autêntica formação aos valores culturais, como terreno privilegiado para uma vida de fé em simbiose com a vida intelectual. A este respeito, é conveniente recomendar uma atenção particular ao ensino da filosofia, da história e da literatura, como lugares essenciais de encontro entre a fé e as culturas.
A presença da Igreja na universidade e na cultura universitária,(24) com as iniciativas concretas capazes de tornar esta presença eficiente, exigem um discernimento exigente e um esforço sem cessar renovado para promover uma nova cultura cristã nutrida com as melhores aquisições em todos os campos da atividade universitária.

Uma tal urgência de formação humana e cristã, requer presbíteros, religiosos e leigos bem formados. O seu trabalho conjunto permitirá que as instituições educativas católicas influenciem a produção didática, bem como os profissionais da cultura, e favorecerá a difusão de um modelo cristão de relações entre educadores e educandos, no seio de uma verdadeira comunidade educativa. A formação integral da pessoa é um dos objetivos principais da pastoral da cultura.
 A Escola é, por definição, um dos lugares de iniciação cultural e, em certos países há muitos séculos, um dos lugares privilegiados de transmissão de uma cultura forjada pelo cristianismo. Ora, se em um certo número de países, o « ensino religioso » encontra aí o seu lugar, não ocorre o mesmo na Maior parte dos países secularizados. Tanto numa como em outra situação, coloca-se o mesmo problema fundamental: a relação entre cultura religiosa e catequese: aparece um receio, não sem fundamento, de que a imposição a todos de cursos de « religião » obriga aqueles que são encarregados de ministrá-los a se ater, de fato, à mera cultura religiosa. Com efeito, quando se reduz o número daqueles que se beneficiam de uma catequese regular, a cultura religiosa, não garantida de outras maneiras, corre o risco, em pouco tempo, de enfraquecer-se no seio das novas gerações. Portanto, é urgente reavaliar a relação entre cultura religiosa e catequese, e traduzir de maneira nova a articulação entre a necessidade de apresentar aos alunos uma informação religiosa exata e objetiva, por vezes ausente, e a importância capital do testemunho de fé. É também indispensável a complementaridade entre a escola e a paróquia, e é também necessário escolher os professores aptos a fazer destes estabelecimentos escolas de crescimento espiritual e cultural. Estas são as condições para o êxito desta pastoral exigente e promissora.


IV CONCLUSÃO

 A cultura entendida no seguimento do Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, n. 53-62) no seu sentido mais amplo se apresenta para a Igreja, no limiar do Terceiro Milênio, como uma dimensão fundamental da pastoral e « uma autentica pastoral da cultura [é] decisiva para a Nova Evangelização ».(30) Firmemente empenhados nos caminhos de uma evangelização que atinja os espíritos e os corações e transforme, fecundando-as, todas as culturas, os responsáveis pela pastoral da cultura, discernindo à luz do Espírito Santo os desafios surgidos de culturas indiferentes, e às vezes hostis à fé, como também os dados culturais que se constituem em fundamentos para o anúncio do Evangelho. « Pois o Evangelho leva a cultura à sua perfeição e a autêntica cultura é aberta ao Evangelho ».(31)

Numerosos encontros entre os bispos e homens de cultura de diferentes meios científico, tecnológico, educativo, artístico, evidenciaram os elementos de uma tal pastoral, os seus pressupostos e suas exigências, os seus obstáculos e os seus fundamentos, os seus objetivos primordiais e os seus meios privilegiados. A imensidade deste campo de apostolado, nesse « vastíssimo areópago » (Redemptoris Missio, n. 37) na diversidade e na complexidade das áreas culturais, exige uma cooperação em todos os níveis, da paróquia à Conferência Episcopal, de uma região a um continente. O Conselho Pontifício da Cultura se empenha por sua parte, no âmbito da sua missão,(32) a favorecer uma tal cooperação e a promover contatos estimulantes e iniciativas adaptadas, especialmente em nível dos Dicastérios da Cúria romana, das Conferências Episcopais, das organizações Internacionais Católicas, universitárias, históricas, filosóficas, teológicas, científicas, artísticas, intelectuais, bem como das Academias Pontifícias (33) e dos Centros Culturais Católicos.(34)

« Ide e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei » (Mt 28, 19-20). Seguindo o caminho indicado pelo Senhor, a pastoral da cultura, estreitamente ligada ao testemunho de fé pessoal e comunitário dos cristãos, inscreve-se na missão de anunciar a Boa nova do Evangelho a todos os homens de todos os tempos, como meio privilegiado de evangelizar as culturas e de inculturar a fé. « Esta constitui uma exigência que marcou todo o caminho histórico (da Igreja), mas hoje é particularmente aguda e urgente... requer um tempo longo... um processo profundo, global e difícil » (Redemptoris Missio, n. 52). Às vésperas do Terceiro Milênio, quem não vê a sua importância para o futuro da Igreja e do mundo? O anúncio do Evangelho de Cristo nos urge a constituir comunidades de fé vivas, profundamente inseridas nas diversas culturas e portadoras de esperança, para promover uma cultura da verdade e do amor na qual cada pessoa possa corresponder plenamente à sua vocação de filho de Deus « na plenitude de Cristo » (Ef 4, 13). A urgência da pastoral da cultura é grande, a tarefa gigantesca, as modalidades múltiplas, as possibilidades imensas, no limiar do novo milênio da vinda de Cristo, Filho de Deus e Filho de Maria, cuja mensagem de amor e de verdade satisfaz, além de toda expectativa, a necessidade primordial de toda cultura humana. « Às culturas, a fé em Cristo dá uma dimensão nova, a da esperança do Reino de Deus. Os cristãos têm a vocação de inscrever no centro das culturas esta esperança duma terra nova e de céus novos... Muito longe de as ameaçar ou de as empobrecer, o Evangelho oferece-lhes um acréscimo de alegria e de beleza, de liberdade e de sentido, de verdade e de bondade ».(35)

Em resumo, a pastoral da cultura, nas suas múltiplas expressões, das quais este documento apresenta algumas propostas selecionadas, não tem outro objetivo que o de ajudar toda a Igreja a cumprir a sua missão de anunciar o Evangelho. No limiar do novo milênio, com a força da Palavra de Deus « inspiradora de toda a existência cristã » (Tertio Millennio Adveniente, n. 36), ela ajuda o homem a superar o drama do humanismo ateu e a criar um « novo humanismo » (Gaudium et Spes, n. 55) capaz de suscitar, em toda parte do mundo, culturas transformadas pela prodigiosa novidade de Cristo, que « se fez homem para que o homem seja divinizado »,(36) se renove à imagem do seu Criador (cf. Col 3, 10) e cresça como homem novo (cf. Ef 4, 24). Que Ele renove todas as culturas pela força criadora do seu Espírito Santo, fonte da qual brota a beleza, o amor e a verdade.


DADOS BIBLIOGRAFICOS

 (1) João Paulo II, Discurso à Assembléia Geral das Nações Unidas, 5 de Outubro de 1995, n. 9.
(2) João Paulo II, Carta Autógrafa instituindo o Conselho Pontifício da Cultura, 20 de Maio de 1982, AAS, 74 (1982) 683-688.
(3) João Paulo II, Discurso ao Conselho Pontifício da Cultura, 15 de Janeiro de 1985.
(4) Pontificia Comissão Bíblica, Fé e cultura à luz da Bíblia.
(5) Comissão Teológica Internacional, Fé e inculturação.
(6) Puebla, a evangelização no presente e no futuro da América Latina, 1979, n. 385-436;Santo Domingo, nova evangelização, promoção humana, cultura cristã, 1992, n. 228-286.
(7) Cf. João Paulo II, Discurso à UNESCO, 2 de Junho de 1980, n. 12, OR (ed. port.), ano XI, n. 24 (550), p. 14 (338).
(8) Cf. Indiferentismo y sincretismo. Desafios y propostas pastorales para la Nueva Evangelización de América Latina, Simposio, San José de Costa Rica, 19-23 de Janeiro de 1992, Bogotá, Celam, 1992.
(9) Cf. IV Conferencia Geral do Episcopado Latino-Americano, Santo Domingo, op. cit., n. 230.
(10) Cf. III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Puebla, op. cit., n. 405.
(11) João Paulo II, Homilia da missa de entronização, 22 de Outubro de 1978, OR (ed. port.), ano IX, n. 44 (465), p. 2.
(12) Conselho Pontifício das Comunicações Sociais, Instrução pastoral Aetatis Novae, 1992, n. 4.
(13) Conselho Pontifício das Comunicações Sociais, Ética na publicidade, 22 de Fevereiro de 1997.
(14) João Paulo II, Mensagem para o XXXI Dia Mundial das Comunicações Sociais, 14 de Janeiro de 1997, OR (ed. port.), ano XXVIII, n. 5, p. 2.
(15) João Paulo II, Discurso à Assembléia Geral da O.N.U., 5 de Outubro de 1995, n. 8, OR, (1995) n. 41, p. 4 (492).
(16) Cf. Aa.Vv., Après Galilée. Science et Foi. Nouveau Dialogue, Paris, DDB, 1994. Trad. italiana, Piemme, 1996.
(17) João Paulo II, Discurso na audiência geral, 6 de Dezembro de 1995.
(18) João Paulo II, Discurso à UNESCO, n. 11.
(19) Cf. IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Santo Domingo, op. cit., n. 228-286; e a Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America, 22 de Janeiro de 1999, n. 64.
(20) Cf. Consistório extraordinário dos Cardeais, Roma (4-6 de Abril de 1991); Les sectes, défi pastoral pour l'Église, Cité du Vatican 1986; Sectes et nouveaux mouvements religieux. Anthologie des textes de l'Église catholique 1986-1994, Paris, Téqui, 1996.
(21) João Paulo II, Discurso ao Conselho Pontifício da CulturaOR (ed. port.) ano XXVIII, n. 13, p. 4 (136).
(22) Cf. duas cartas do Conselho Pontifício para o Diálogo inter-religioso, « Pastoral Attention to African Traditional Religions », Bulletin, 68 (1988) XXIII2, 102-106; « Pastoral Attention to Traditional Religions », ibid., 84 (1993) XXVIII3, 234-240.
(23) Cf. Congregação para a Educação Católica, O leigo católico, testemunha da fé na escola, 15 de Outubro de 1982; João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici, sobre a vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo, n. 44.
(24) Cf. Congregação para a Educação Católica, Conselho Pontifício para os Leigos, Conselho Pontifício da Cultura, Presença da Igreja na universidade e na Cultura universitária, Vaticano 1994.
(25) Pontificium Consilium de Cultura, Centres Culturels Catholiques, Cité du Vatican 1998; Pontificio Consiglio della Cultura, Commissione Episcopale CEI per l'Educazione Cattolica, la Cultura, la Scuola e l'Università, I Centri Culturali Cattolici. Idea, esperienza, missione. Elenco e indirizzi, 2a ed., Roma, Città Nuova Editrice, 1998.
(26) Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, IV Instrução para uma correta aplicação da Constituição conciliar sobre a liturgia (n. 37-40).
(27) A este respeito, é preciso sublinhar as iniciativas de instituir cursos universitários dedicados à formação de futuros responsáveis pelo patrimônio cultural da Igreja, por exemplo, na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), no Instituto Católico de Paris e na Universidade Católica de Lisboa. Cf. Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja, Lettre circulaire sur la formation aux biens culturels dans les Séminaires, 15 de Outubro de 1992.
(28) Cf. João Paulo II, Discurso à primeira Assembléia plenária da Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja.
(29) João Paulo II, Discurso ao Conselho Pontifício da Cultura, OR (ed. port.) ano XIV, n. 5, p. 4.
(30) João Paulo II, Discurso ao Conselho Pontificio da cultura, 14 de Março de 1997.
(31) Ibid.
(32) « Eu institui o Conselho Pontifício da Cultura para ajudar a Igreja a viver o intercâmbio salvífico no qual a inculturação do Evangelho caminha pari passu com a Evangelização das culturas ». Ibid.
(33) Criado pelo Papa João Paulo II a 6 de Novembro de 1995, o Conselho de Coordenação das Academias Pontifícias promove a sua colaboração conjunta para um humanismo cristão no limiar do novo milênio. Quando da sua primeira Sessão pública, reunida sob sua presidência, a 28 de Novembro de 1996, o Santo Padre anunciou a criação de um Prêmio anual das Academias Pontifícias, destinado a apoiar os talentos e as iniciativas promissoras em vista de um humanismo cristão, suas expressões teológicas, filosóficas e artísticas. O Papa João Paulo II concedeu este prêmio pela primeira vez no curso da Segunda sessão pública das Academias pontifícias, a 3 de Novembro de 1997.
(34) Cf. a missão e as competências confiadas ao Conselho Pontifício da Cultura: João Paulo II, Carta Autógrafa instituindo o Conselho Pontifício da Cultura, 20 de Maio de 1982, AAS, t. 74 (1982) 683-688, e Motu Proprio Inde a Pontificatus, 25 de Março de 1993, AAS, LXXXV (1993) 549-552.
(35) João Paulo II, Discurso ao Conselho Pontifício da Cultura, 15 de Março de 1997, OR (ed. port.), ano XXVIII (1997), n. 13, p. 4 (136).
(36) Santo Atanásio, Sobre a Encarnação do Verbo, 54, 3. PG 25, 92; Sources Chrétiennes, 199, 1973