FACULDADE DE TEOLOGIA - ITUSAL
MATÉRIAS COMPLEMENTARES
EUGENIA GOMES DA SILVA
O Concílio Vaticano II foi sem dúvida o maior acontecimento da Igreja
Católica em todo o século XX. Trouxe-nos dinâmica missionária e
responsabilidades para com o mundo atual. O aggiornamento, que significa
atualização, mostrou-nos quanto a Igreja deseja anunciar o tesouro depositado e
a ela confiado.
Como resultado das reflexões, orações e trabalhos diversos durante todos
os três anos seguidos do Concílio, temos um compêndio de documentos que tratam
dos assuntos mais importantes ali suscitados. Esses documentos, de acordo com
sua importância e temática, são classificados como Constituições, Declarações e
Decretos
As Constituições Apostólicas são as de maior importância e tratam de
assuntos fundamentais a nossa fé. Elas podem ser Constituições Dogmáticas ou
Constituições Disciplinares (Pastorais e Conciliares). Quanto às Dogmáticas,
tratam dos dogmas fundamentais da nossa fé; as Disciplinares dizem respeito às
determinações canônicas, oficiais da Igreja. O Concílio Vaticano II produziu
duas Constituições Dogmáticas: a Dei Verbum (Sobre a Revelação Divina) e a
Lumen Gentium (Sobre a Igreja). Também presenteou-nos com duas Constituições
Pastorais Conciliares: a Sacrosanctum Concilium (Sobre a Sagrada Liturgia da
Igreja) e a Gaudium et Spes (Sobre a Igreja no Mundo atual).
As Declarações, como o nome já nos diz, apresentam declarações advindas
de autoridades eclesiásticas. As produzidas pelo Concílio foram três:
Gravissimum Educationis (Sobre a Educação Cristã), Nostra Aetate (Sobre a
Igreja e as Religiões não-Cristãs) e Dignitatis Humanae (Sobre a Liberdade
Religiosa).
Os Decretos não diferem muito da compreensão que já temos a partir do
Direito Civil, tratam-se de declarações que determinam o cumprimento de
decisões de uma autoridade. As autoridades hierárquicas da Igreja (Papa,
Bispos, Padres e Diáconos) podem criar Decretos, dentro de seus limites de
autoridade, a respeito de determinado assunto. Neste caso temos Decretos
Conciliares porque foram produzidos pelo Concílio e receberam a assinatura do
Papa. São nove os Decretos do Vaticano II: Ad Gentes (Sobre a Atividade
Missionária da Igreja), Presbyterorum Ordinis (Sobre o Ministério e a Vida dos
Sacerdotes), Apostolicam Actuositatem (Sobre o Apostolado dos Leigos), Optatam
Totius (Sobre a Formação Sacerdotal), Perfectae Caritatis (Sobre a Conveniente
Renovação da Vida Religiosa), Christus Dominus (Sobre o Múnus Pastoral dos
Bispos na Igreja), Unitatis Redintegratio (Sobre o Ecumenismo), Orientalium
Ecclesiarum (Sobre as Igrejas Orientais Católicas) e Inter Mirifica (Sobre os
Meios de Comunicação Social).
Como todos os documentos da Igreja, os textos originais do Concílio
Vaticano II estão em Língua Latina e são identificados pelas primeiras duas ou
três palavras latinas que iniciam o documento. Por exemplo: Lumen Gentium, ou
seja, Luz dos povos. Daí decorre o recurso de que qualquer dúvida ou
incompreensão, a respeito do texto e conteúdo dos documentos, sejam sanadas
através de seus originais latinos.
Esses são os textos fundamentais para todos os que queiram aproximar-se
do que foi este acontecimento tão grandioso para todo o mundo católico. São
como que portas iniciais para os que queremos crescer na fé e no conhecimento
da Igreja, depositária do tesouro da Boa Nova de Jesus. Precisamos estar sempre
prontos a dar razão de nossa esperança a todos aqueles que a pedirem. (Cf. 1Pd
3,15).
O Concílio Vaticano II (CVII), XXI Concílio Ecumênico da Igreja
Católica, foi convocado no dia 25 de Dezembro de 1961, através da bula papal
"Humanae salutis", pelo Papa João XXIII. Este mesmo Papa inaugurou-o,
a ritmo extraordinário, no dia 11 de outubro de 1962. O Concílio, realizado em
4 sessões, só terminou no dia 8 de dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo
VI.
Nestas quatro sessões, mais de 2 000 Prelados convocados de todo o
planeta discutiram e regulamentaram vários temas da Igreja Católica. As suas
decisões estão expressas nas 4 constituições, 9 decretos e 3 declarações elaboradas
e aprovadas pelo Concílio.[1] Apesar da sua boa intenção em tentar atualizar a
Igreja, os resultados deste Concílio, para alguns estudiosos, ainda não foram
totalmente entendidos nos dias de hoje, enfrentando por isso vários problemas
que perduram. Para muitos estudiosos, é esperado que os jovens teólogos dessa
época, que participaram do Concílio, salvaguardem a sua natureza; depois de
João XXIII, todos os Papas que o sucederam até Bento XVI, inclusive,
participaram do Concílio ou como Padres conciliares (ou prelados) ou como
consultores teológicos (ou peritos).
Em 1995, o Papa João Paulo II classificou o Concílio Vaticano II como
"um momento de reflexão global da Igreja sobre si mesma e sobre as suas
relações com o mundo". Ele acrescentou também que esta "reflexão
global" impelia a Igreja "a uma fidelidade cada vez maior ao seu
Senhor. Mas o impulso vinha também das grandes mudanças do mundo contemporâneo,
que, como “sinais dos tempos”, exigiam ser decifradas à luz da Palavra de
Deus".
No ano 2000, João Paulo II disse ainda que: "o Concílio Vaticano II
constituiu uma dádiva do Espírito à sua Igreja. É por este motivo que permanece
como um evento fundamental não só para compreender a história da Igreja no fim
do século mas também, e sobretudo, para verificar a presença permanente do
Ressuscitado ao lado da sua Esposa no meio das vicissitudes do mundo. Mediante
a Assembleia conciliar, [...] pôde-se constatar que o património de dois mil
anos de fé se conservou na sua originalidade autêntica".
Todos os concílios católicos são nomeados segundo o local onde se deu o
concílio episcopal. A numeração indica a quantidade de concílios que se deram
em tal localidade. Vaticano II portanto, indica que o concílio ocorreu na
cidade-Estado do Vaticano, e o número dois indica que foi o segundo concílio
realizado nesta localidade.
Os concílios, que são reuniões de dignidades eclesiásticas e de
teólogos, são um esforço comum da Igreja, ou parte da Igreja, para a sua
própria preservação e defesa, ou guarda e clareza da Fé e da doutrina. No caso
do Concílio Vaticano II, a necessidade de defesa se fez de modo universal,
porque as situações contemporâneas de proporções globais abalaram a Igreja.
Isto fez com que a autoridade universal da Igreja, na pessoa do Papa, se
encontra persuadida a convocar um concílio universal ou ecumênico. A força do
Concílio não reside nos bispos ou em outros eclesiásticos, mas sim no Papa,
como pastor universal que declara algo como sendo próprio das Verdades
reveladas (e, por isso, implica a obediência dos católicos). Fora disso, o
Concílio tem apenas poder sinodal. Porém, quando o concílio está em comunhão
com o Papa, e se o Papa falasse solenemente (ex cathedra) de matérias
relacionadas com a fé e a moral, o episcopado plenamente reunido torna-se também
infalível.
Da Revolução Francesa ao início do século XX, passando por todo o século
XIX, a Igreja Católica foi sendo "perseguida, difamada, dessacralizada e
desacreditada pelos “liberais”", pelos comunistas e socialistas e pelos
radicais ateus. A Igreja, por outro lado, vendo tudo isso acontecer, condenou
por isso as novas correntes filosóficas agnósticas e subjectivistas, que estão
associadas à heresia modernista. Esta heresia foi fortemente condenada pelos
Papas Gregório XVI (1831-1846), Pio IX (1846-1878) e São Pio X (1903-1914).
Esta atitude reaccionária foi também o espírito do Concílio Vaticano I
(1869–70), que definiu o dogma da infalibilidade papal.
Por outro lado, floresceram também na Igreja tentativas de adaptação ao
mundo moderno, através, como por exemplo, da "atitude de vários leigos
católicos no campo político e social" (destaca-se Frédéric Antoine Ozanam,
fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo); da publicação da encíclica
Rerum Novarum (1890) pelo Papa Leão XIII (1878-1903), que defendia os direitos
dos trabalhadores; da criação da Acção Católica (1922) pelo Papa Pio XI
(1922-1939); e da perda gradual de popularidade da Escolástica e do conseqüente
aparecimento da Nouvelle Theologie (que é diferente do modernismo). Este
movimento teológico do início do século XX, que é apoiado por alguns sectores
eclesiásticos, defendia principalmente "a valorização da leitura das
Sagradas Escrituras" (que foi também um dos temas da encíclica Divino
afflante Spiritu do Papa Pio XII) e uma "volta às fontes", através do
estudo da Bíblia e das obras patrísticas. Os defensores mais ilustres da
Nouvelle Theologie foram os progressistas Karl Rahner, John Courtney Murray,
Yves Congar, Joseph Ratzinger e Henri de Lubac. Teilhard de Chardin e Jacques
Maritain também defenderam uma maior abertura da Igreja.
Ao mesmo tempo, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), a Cúria Romana "encontrava-se em franco processo de
estagnação" e vários dos seus elementos mais tradicionais condenaram as
novas tendências teológicas mais progressistas. Em 1950, o Papa Pio XII, na sua
encíclica Humani Generis, chegou mesmo a alertar para os possíveis desvios
"neo-modernistas" da Nouvelle Theologie. Enquanto que tudo isso
aconteça, os bispos de todo o mundo tiveram que enfrentar novos problemas
originados por drásticas mudanças políticas, sociais, económicas e
tecnológico-científicas. É neste ambiente paradoxal, quer ao nível interno quer
ao nível externo da Igreja, que muitos católicos sentiram a necessidade de a
Igreja encontrar uma nova postura para enfrentar o mundo moderno.
E é também neste ambiente que o Papa João XXIII sentiu a necessidade
urgente de convocar o Concílio Vaticano II. Aliás, "a ideia de um Concílio
já havia sido pensada por Pio XI e mesmo por Pio XII, mas sem grandes sucessos
em sua realização". João XXIII, "temendo um novo desastre, como foi o
da Reforma Protestante", decidiu realizar este Concílio a todo o custo.
Esta sua intenção foi anunciada por ele no dia 25 de janeiro de 1959, causando
uma grande surpresa dentro da Cúria Romana e até dentro da Igreja Católica. Em
Junho de 1960, através do motu proprio Superno Dei nutu, teve oficialmente
início a preparação do Concílio. Passado apenas um ano, no Natal de 1961, João
XXIII convocou oficialmente o Concílio para o ano seguinte (1962), através da
bula papal "Humanae salutis". Esta convocação era "uma decisão
totalmente pessoal do Papa, contrariando as opiniões de alguns cardeais, que
pretendiam seu adiamento, em vista de uma melhor preparação.
Segundo o Papa Bento XVI, depois das Sagradas Escrituras, o Papa Pio XII
é o autor ou fonte autorizada mais citada nos documentos do Concílio Vaticano
II. Bento XVI considera que não é possível entender o Concílio Vaticano II sem
levar em conta o magistério de Pio XII. (...) A herança do magistério de Pio
XII foi recolhida pelo Concílio Vaticano II e proposta às gerações cristãs
posteriores.
Nas intervenções orais e escritas, se encontram mais de mil referências
ao magistério de Pio XII e o seu nome aparece mencionado em mais de duzentas
notas explicativas dos documentos do Concílio, estas notas com freqüência
constituem autênticas partes integrantes dos textos conciliares; não só
oferecem justificativas de apoio para o que afirma o texto, mas também oferecem
uma chave de interpretação, disse o Papa Bento XVI no discurso que dirigiu aos
participantes do congresso sobre "A herança do magistério de Pio XII e o
Concílio Vaticano II", promovido pelas universidades pontifícias
Gregoriana e Lateranense, no 50º aniversário da morte de Pio XII (2008).
Como por exemplo, os conceitos e as ideias expressas na encíclica
Mystici Corporis Christi (1943), do Papa Pio XII, influenciaram fortemente a
redacção da constituição dogmática Lumen Gentium, que trata da natureza e da constituição
da Igreja. Este documento do Concílio Vaticano II usou e defendeu o conceito de
Igreja expresso nesta encíclica (a Igreja como Corpo místico de Cristo), que
era baseado na velha teologia de São Paulo.
O objetivo do Concílio é discutir a ação da Igreja nos tempos atuais, ou
seja, a sua finalidade é "promover o incremento da fé católica e uma
saudável renovação dos costumes do povo cristão, e adaptar a disciplina
eclesiástica às condições do nosso tempo" e do mundo moderno. Por outras
palavras, o Concílio pretende o aggiornamento (actualização e abertura) da
Igreja.
O Papa João XXIII "imaginava o Concílio como um «novo Pentecostes»
[...]; uma grande experiência espiritual que reconstituiria a Igreja
Católica" não apenas como instituição, mas sim "como um movimento
evangélico dinâmico [...]; e uma conversa aberta entre os bispos de todo o
mundo sobre como renovar o Catolicismo como estilo de vida inevitável e
vital".
Por esta razão, ao contrário dos concílios ecuménicos anteriores,
preocupados mais em condenar heresias e em definir verdades de fé e de moral, o
Concílio Vaticano II "teve como orientação fundamental a procura de um
papel mais participativo para a fé católica na sociedade, com atenção para os
problemas sociais e econômicos".[11] Aliás, o próprio Papa João XXIII teve
o cuidado de mencionar a diferença e a especificidade deste Concílio: "a
Igreja sempre se opôs a [...] erros; muitas vezes até os condenou com a maior
severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da
misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de
hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações".
Logo, o Concílio não visava a condenar heresias nem proclamar nenhum
dogma novo. O Concílio apenas queria dar uma nova orientação pastoral à Igreja
e uma nova forma de apresentar e explicar os dogmas católicos ao mundo moderno,
mas sempre fiel à Tradição. O próprio Papa João XXIII afirmou que "o que
mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da
doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz". Para
satisfazer esta sua intenção, o Papa queria ardentemente que a Igreja mudasse
de mentalidade, para poder melhor enfrentar e acompanhar as transformações do
mundo moderno.
Pelas palavras da constituição Sacrosanctum Concilium, o "Concílio
propõe-se a fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às
necessidades do nosso tempo as instituições suscetíveis de mudança, promover
tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o
que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja".
A abertura do Concílio Vaticano II.
No dia 11 de outubro de 1962, o Concílio Vaticano II, idealizado pelo
Papa João XXIII, "teve seus trabalhos oficialmente inaugurados, contando
com a presença de 2 540 padres conciliares ou prelados, número este inédito
para a História da Igreja: 1060 europeus (dos quais 423 italianos, 144
franceses, 87 espanhóis, 59 poloneses, 29 portugueses…), 408 asiáticos, 351
africanos, 416 da América do Norte, 620 da América Latina e 74 da
Oceânia". Mas, mesmo assim, "estavam ainda ausentes do Concílio
muitos bispos de dioceses que viviam sob regimes autoritários", na sua
maioria de ideologia comunista. "O número de participantes variou muito de
acordo com as sessões, nunca porém estando abaixo de 80% do total de padres
conciliares".
Pela primeira vez na História, "os peritos [...] foram ouvidos na
elaboração dos textos conciliares, trazendo consigo uma imensa riqueza de
tradições e culturas". Estes peritos, que não tinham direito a voto, são
também chamados de consultores teológicos e tinham uma grande influência no
Concílio. Várias dezenas de observadores protestantes e ortodoxos também foram
convidados e estiveram presentes nas 4 sessões do Concílio.
De acordo com Giacomo Martina, os padres conciliares "se
organizavam em torno de duas alas" (conservadora e progressista), sendo
que os progressistas contam com cerca de 90% dos votos. A minoria conservadora
era essencialmente constituída "pela velha-guarda italiana (Ottaviani,
Ruffini, Siri...)", por Marcel Lefebvre, por um grupo de espanhóis (entre
os quais o cardeal Larraona) e "por vários latino-americanos,
representantes de escolas teológicas de certo prestígio, especialmente na
Espanha". A maioria progressista era essencialmente "constituída por
um grupo da Europa central e do Norte (a que pertenciam os cardeais Frings,
Dopfner, Alfrink, König, Suenens, Liénart e Bea)", por Montini, por Léger,
pelo Patriarca Melquita Máximos IV, pelos bispos africanos e asiáticos e por
"uma grande maioria dos bispos latino-americanos e dos Estados
Unidos". Mas, mesmo assim, os progressistas tiveram que, por diversas
vezes, fazer várias concessões aos conservadores, tornando, por isso, os
documentos conciliares menos radicais.
Entre várias decisões conciliares, destacam-se as renovações na
constituição e na pastoral da Igreja, que passou a ser mais alicerçada na igual
dignidade de todos os fiéis e a ser mais virada e aberta para o mundo. Além
disso, reformou-se também a Liturgia, onde a Missa de rito romano foi
simplificada e passou a ser celebrada em língua vernacular.
Foi clarificada a relação entre a Revelação divina e a Tradição e foi
também impulsionada a liberdade religiosa, uma nova abordagem ao mundo moderno,
o ecumenismo, uma relação de tolerância com os não cristãos e o apostolado dos
leigos.
O Concílio Vaticano II não proclamou nenhum dogma, mas as suas
orientações doutrinais, pastorais e práticas são de extrema importância para a
Igreja atual.
O tema da Igreja, nos seus aspectos dogmáticos e pastorais, mereceram
uma grande atenção dos padres conciliares, ou seja, dos participantes-eleitores
do Concílio Vaticano II.
ordinis", que foi aprovado no dia 7 de dezembro de 1965. Este
documento insiste no "servi
A partir de então, a Igreja passou a ser vista não apenas como uma
instituição hierarquizada, mas também como uma comunidade de cristãos
espalhados por todo o mundo e constituintes do Corpo Místico de Cristo. Por
isso, a constituição e "as estruturas da Igreja modificaram-se
parcialmente e abriu-se espaço para maior participação e apostolado dos leigos,
incluindo as mulheres, na vida eclesial". O concílio clarificou, também, a
igual dignidade de todos os católicos (clérigos ou leigos). Mas, mesmo assim, a
estrutura da Cúria Romana permaneceu intacta, o que permite ainda um governo da
Igreja centralizado nas mãos do Papa.
O decreto "Orientalium ecclesiarum", que foi aprovado no dia
21 de novembro de 1964, aborda a questão das Igrejas orientais católicas. Estas
Igrejas particulares sui juris possuem características únicas e diferentes em
relação à Igreja Latina (a Igreja sui juris predominante), nomeadamente ao
nível histórico, cultural, teológico, litúrgico, hierárquico e de organização
territorial.
Este documento afirma que, "na única Igreja de Cristo" (que
subsiste na Igreja Católica), as Igrejas Latina e Orientais "... desfrutam
de igual dignidade... nenhuma prevalece sobre a outra... são confiadas ao
governo pastoral do Pontífice Romano". O decreto defende, também, que
estas Igrejas orientais podem e devem salvaguardar, conservar e restaurar o seu
rico património espiritual, nomeadamente ritual, através, como por exemplo, da
celebração dos seus próprios ritos litúrgicos orientais e das suas práticas rituais
antigas.
A declaração "Nostra aetate", aprovada no dia 28 de outubro de
1965, "analisou a atitude da Igreja Católica para com as religiões não
cristãs, sintetizada no pedido joanino: "Buscai primeiramente aquilo que
une, antes de buscar o que divide"". Isto criou um espírito de maior
tolerância e aproximação respeitosa às outras religiões não cristãs e também à
progressiva rejeição do anti-semitismo. Mas, isto nunca pretendeu negar a
crença católica de que só por meio da Igreja Católica "se pode obter toda
a plenitude dos meios de salvação". Mas, isto também não impede a Igreja
de defender que todos (mesmo os não-cristãos) podem também ser salvos, desde
que, sem culpa própria, ignoram a Palavra de Deus e a Igreja, mas que
"procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por
cumprir a sua vontade".
Este espírito de abertura a outras comunidades religiosas está também
presente no decreto "Unitatis redintegratio", que foi aprovado no dia
21 de novembro de 1964. Este documento é sobre o ecumenismo e
"fundamenta-se em duas ideias : todo aquele que acredita em Cristo, mesmo
que não pertença à Igreja Católica, encontra-se em algum tipo de comunhão"
com a verdadeira Igreja de Cristo (que subsiste na Igreja Católica); e
"não existe ecumenismo verdadeiro sem uma conversão interior que se aplica
a todos, inclusive à Igreja Católica". Actualmente, a Igreja Católica
ensina que os cristãos não-católicos são, apesar de um modo imperfeito, membros
inseparáveis do Corpo Místico de Cristo (ou seja, da Igreja Católica), através
do Baptismo. Eles dispõem também de muitos, mas não da totalidade, dos
elementos de santificação e de verdade necessárias à salvação. O Concílio
Vaticano II produziu 16 documentos, sendo quatro Constituições, nove Decretos e
três Declarações. Padre Gerson Schmidt, jornalista, incardinado na Arquidiocese
de Porto Alegre, nos faz uma introdução dos quatro "documentos pilares de
um edifício":
"Passados mais de 50 anos do encerramento do Concilio Vaticano II,
a Igreja percebe, cada vez mais, que de fato o Concílio foi um acontecimento
fundamental, um divisor de águas, sem o qual hoje não se compreenderia muito
bem a missão da Igreja, como o próprio documento conciliar Lumen Gentium
aponta, a Igreja ser a Luz para os povos, um sacramento universal de Salvação.
A constituição dogmática Lumen Gentium é o documento central do Concílio. Quem
mesmo disse isso, que a Lumen Gentium é o documento mais importante, foi o Papa
Paulo VI, o Papa do Concílio que deu sequência ao concílio, depois da morte de
João XIII . E disse mais que, dos oito capítulos de Lumen Gentium, o capítulo
quinto era o mais importante, que trata da “vocação universal a santidade” –
todos somos chamados a santidade – ou seja, cada um no sua vocação específica,
onde se sente chamado.
A Lumen Gentium faz também uma grande afirmação da Igreja ser
“sacramento da salvação”. Que se entende por isso? E veremos aqui o que
significa realmente ser Sacramento de Salvação para o mundo de hoje. Porque
muitos especialistas afirmam que a Igreja ainda não conseguiu colocar em
prática as conclusões do Concílio e talvez esteja aqui uma das perguntas
principais que deveríamos fazer: a Igreja é para o mundo um sinal, uma luz para
os povos, um sacramento de Salvação? E veremos que talvez estejamos ainda muito
aquém daquela luz que nos deu o Concílio.
Vamos por passos. Dos 16 documentos conciliares, 4 se destacam como os
mais importantes, relevantes, os pilares para entendermos também os outros:
Lumen Gentium, Sacrosanctum Concilium, Gaudium et Spes e Dei Verbum. Essas
quatro são Constituições, os outros apenas Decretos ou Declarações. Comparemos
esses quatro documentos como os quatro pilares que sustentam uma casa ou um
edifício. Sobre esses quatro pilares a Igreja hoje edifica sua missão, para
salvaguardar o depósito, o tesouro da sua doutrina, a riqueza do Evangelho,
para apresentá-lo ao mundo, ao homem de nosso tempo. Entendamos bem esses 4
documentos, situando cada qual.
1. Precisava-se urgentemente na Igreja uma Renovação Teológica. Houveram
grandes teólogos na época: Para isso, respondeu o documento conciliar Dei
Verbum, que fala de toda a Revelação Divina e de sua transmissão, que é uma
constituição dogmática;
2. Precisava-se renovar a Liturgia, não podendo mais somente se rezar em
Latim, o padre virado de costas e ninguém entendendo nada da Liturgia. A
Constituição Sacrosanctum Concilium responde a essa verdadeira renovação do
modo de celebrar e entender a própria liturgia;
3. Urgia, na Igreja, um verdadeiro e profundo diálogo com o mundo, com o
homem moderno, da técnica, das correntes sociais. A Constituição pastoral
Gaudium et Spes vinha de encontro a essas tantas perguntas que se fazem da
vida, da sociedade em constante mudança e a missão da Igreja no mundo. Note-se
que é uma constituição pastoral porque tem a intenção de exprimir as relações
da Igreja com o mundo e o homem moderno – diria hoje já pós-moderno. Diga-se
que o concílio teve esse caráter pastoral e ecumênico, não tanto dogmático como
foi o de Trento e outros.
4. Finalmente, também se precisava uma verdadeira mudança de mentalidade
em relação à própria identidade da Igreja, refletindo sobre si mesma, sua
missão, sua atuação como fermento de transformação. Para isso a Constituição
dogmática Lumen Gentium, vinha de encontro a essas respostas. Diga-se que esse
foi o mais polêmico documento, que necessitou de inúmeras reformulações até ser
aprovado quase por unanimidade, havendo apenas 5 votos contrários em novembro
de 1964. Falar para os outros é fácil. Falar de si mesmo é tarefa mais complicada.
E por isso esse documento, amplamente discutido e revisado, é hoje uma grande
pérola em nossas mãos que temos que aprofundar, nesse espaço Memória histórica,
50 anos do Concilio Vaticano II.
Para finalizar, gostaria aqui de fazer uma comparação desses quatro
documentos com a conclusão do sínodo dos bispos sobre a Palavra que aconteceu
em 2008. Os bispos, nesse sínodo, faziam uma bela comparação e diziam que a
PALAVRA DE DEUS TEM UMA CASA, UM ROSTO, UMA BOCA E UM CAMINHO. A CASA da
palavra é a Igreja; o rosto da Palavra é Jesus Cristo; a Voz da Palavra é a
revelação e o caminho da Palavra é a evangelização.
DERSENVOLVIMENTO CONCÍLIO VATICANO II
Os anos sucessivos ao Concílio Vaticano II foram extremamente produtivos
para a teologia católica. Surgiram novas voze teológicas, especialmente de
leigos e de mulheres; teologias provenientes de novos contextos culturais,
particularmente da América Latina, África e Ásia; novos temas para a reflexão,
como paz, justiça, libertação, ecologia e bioética; aprofundamentos de temas já
tratados, graças à renovação dos estudos bíblicos, litúrgicos, patrísticos e
medievais; e novos espaços para a reflexão, como o diálogo ecumênico,
inter-religioso e intercultural. Esses desenvolvimentos foram fundamentalmente
positivos. A teologia católica tem procurado seguir o caminho aberto pelo
Concílio, que quis exprimir sua “solidariedade, respeito e amor para com toda a
família humana”, entrando em diálogo com ela e oferecendo “os recursos da
salvação que a própria Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe de seu
Fundador”. No entanto, neste mesmo período, também aconteceu uma fragmentação
da teologia, que, no diálogo acima referido, sempre se encontra diante do
desafio de manter a sua verdadeira identidade. A questão surge, por conseguinte,
sobre o que caracteriza a teologia católica e dá a ela, em e através de suas
múltiplas formas, um claro sentido de identidade em seu confronto com o mundo
de hoje.
Em certa medida, a Igreja
necessita claramente de um discurso comum se quiser comunicar a mensagem única
de Cristo ao mundo, tanto teológica quanto pastoral. Por essa razão, pode-se
falar legitimamente da necessidade de certa unidade da teologia. Todavia, aqui
a unidade necessita ser bem compreendida, a fim de que não seja confundida com
uniformidade ou com um único estilo. A unidade da teologia, como a da Igreja,
assim como é professada no Creio, deve ser estreitamente correlacionada com a
ideia de catolicidade, e também com a de santidade e apostolicidade. A
catolicidade da Igreja deriva de Cristo mesmo, que é o Salvador de mundo
inteiro e de toda humanidade (cf. Ef 1,3-10; 1Tm 2,3-6). A Igreja, por essa
razão, sente-se em casa em cada nação e cultura, e procura “reunir tudo para a
salvação e santificação”. O fato que há um único Salvador mostra a existência
de uma ligação necessária entre catolicidade e unidade. No explorar o
inesgotável mistério de Deus e os inumeráveis caminhos pelos quais a graça de
Deus opera a salvação em contextos diversos, a teologia correta e
necessariamente assume uma infinidade de formas, e, ainda, no indagar a única
verdade de Deus uno e trino e o uno plano de salvação centrado no único Senhor
Jesus Cristo, essa pluralidade deve manifestar traços familiares distintos.
A Comissão Teológica
Internacional (CTI) já estudou vários aspectos da tarefa teológica em
documentos precedentes, em particular, A unidade da fé e o pluralismo teológico
(1972); Magistério e a Teologia (1975); e A interpretação do Dogma (1990). O
presente texto procura identificar os traços familiares distintos da teologia
católica.[5] Consideram-se as perspectivas e os princípios básicos que
caracterizam a teologia católica, e oferecem critérios pelos quais teologias
diversas e múltiplas possam ser reconhecidas como autenticamente católicas e
como participantes da missão da Igreja Católica, que é a de proclamar a Boa
Nova às pessoas de todas as nações, tribos, povos e línguas (cf. Mt 28,18-20;
Apoc 7,9), e, permitindo-lhes ouvir a voz do único Senhor, reuni-los todos em
um só rebanho e um só pastor (cf. Jo 10,16). Essa missão exige que haja na
teologia católica a diversidade na unidade e a unidade na diversidade. As
teologias católicas devem ser identificadas como tais, apoiarem-se umas às
outras e, mutuamente, ser responsáveis, assim como os próprios cristãos na
comunhão da Igreja para a glória de Deus. O presente texto, consequentemente,
consiste em três capítulos, expondo os seguintes temas: na rica pluralidade de
suas expressões, protagonistas, ideias e contextos, a teologia é católica, e, portanto,
fundamentalmente uma, se surge da atenta escuta da Palavra de Deus (cf.
Capítulo 1); se situada ela mesma consciente e fielmente em comunhão com a
Igreja (cf. Capítulo 2); e se orientada para o serviço de Deus no mundo,
oferecendo a verdade divina aos homens e mulheres de hoje de forma inteligível.
Em diálogo com o mundo
“O povo de Deus acredita que é
conduzido pelo Espírito do Senhor, que enche o mundo todo”. O Concílio Vaticano
II afirmou que a Igreja deve, portanto, estar pronta para discernir “nos
acontecimentos, nas exigências e nas aspirações” do mundo de hoje quais são os
verdadeiros sinais da ação do Espírito. “Para desempenhar tal missão, a Igreja,
a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos (signa temporum
perscrutandi) e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal maneira que possa
responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre o
significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário,
por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças,
suas aspirações e sua índole frequentemente dramática”. No viver a própria
existência cotidiana no mundo com fé, todos os cristãos enfrentam o desafio de
interpretar os acontecimentos e as crises que surgem nas vicissitudes humanas,
e todos participam das conversações e diálogos em que, inevitavelmente, a fé é
questionada e uma resposta é necessária. A Igreja inteira vive, por assim
dizer, na interface entre o Evangelho e a vida cotidiana, que também é o limite
entre o passado e o futuro, enquanto a história avança. A Igreja está sempre em
diálogo e em movimento, e na comunhão dos batizados todos estão dinamicamente
envolvidos, apesar de recair particular responsabilidade sobre bispos e
teólogos, como o Concílio sublinha: “Compete a todo o Povo de Deus,
principalmente aos pastores e teólogos, com o auxílio do Espírito Santo,
discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz
da Palavra divina, para que a verdade revelada possa ser percebida sempre mais
profundamente, melhor entendida e proposta de modo mais adequado”.
A teologia tem uma competência
específica e uma responsabilidade a esse respeito. Através de um diálogo
constante com as correntes sociais, religiosas e culturais do tempo, e com
abertura a outras ciências que, utilizando seus próprios métodos, examinam
esses desenvolvimentos, a teologia pode ajudar os fiéis e o Magistério a ver a
importância das evoluções, acontecimentos e tendências da história humana, e a
discernir e interpretar as formas através das quais o Espírito possa estar
falando para a Igreja e para o mundo.
Os “sinais dos tempos” podem ser
descritos como esses acontecimentos ou fenômenos na história humana que, em
certo sentido, em razão de seu impacto ou alcance, definem o rosto de um
período e dão expressão a particulares exigências ou aspirações da humanidade
daquele tempo. O uso pelo Concílio da expressão “sinais dos tempos” mostra o
pleno reconhecimento da historicidade não só do mundo, mas também da Igreja,
que está no mundo (cf. Jo 17,11.15.18), apesar de não ser do mundo (cf. Jo
17,14.16). O que está acontecendo no mundo em geral, bom ou mau, jamais pode
deixar indiferente a Igreja. O mundo é o lugar onde a Igreja, seguindo os
passos de Cristo, anuncia o Evangelho, testemunha a justiça e a misericórdia de
Deus, e participa do drama da vida humana.
Nos últimos séculos tem havido
grandes avanços sociais e culturais. Poderíamos citar, por exemplo, a
descoberta da historicidade e movimentos como o Iluminismo e a Revolução
Francesa (com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade), os
movimentos de emancipação e a promoção dos direitos das mulheres, os movimentos
pela paz e justiça, os movimentos de libertação e democratização e o movimento
ecológico. A ambivalência da história humana levou a Igreja, às vezes, no
passado, a ser excessivamente cautelosa sobre tais movimentos, por ver, apenas,
as ameaças que eles pudessem conter para a doutrina e para fé católica, e de
negligenciar seu significado. No entanto, tais atitudes mudaram gradualmente
graças ao sensus fidei do Povo de Deus, à clarividência do profetismo de
determinados fiéis, e ao diálogo paciente de teólogos com suas culturas
circundantes. Foi feito um melhor discernimento à luz do Evangelho, com uma
maior disponibilidade para perceber como o Espírito de Deus pode falar através
de tais acontecimentos. Em todo caso, o discernimento deve distinguir
cuidadosamente entre elementos compatíveis com o Evangelho e aqueles contrários
a ele, entre as contribuições positivas e aspectos ideológicos; mas a
compreensão mais aguda do mundo que daí resultam leva a uma valorização mais
penetrante do Cristo Senhor e do Evangelho, já que Cristo é o Salvador do
mundo.
Se o mundo da cultura humana se
beneficia da atividade da Igreja, também a Igreja se beneficia da “história e
do desenvolvimento da humanidade”. “A experiência dos séculos passados, o
progresso das ciências, os tesouros escondidas nas várias formas da cultura
humana, pelos quais a natureza do próprio homem se manifesta mais plenamente e
se abrem novos caminhos para a verdade, são úteis também à Igreja”.[109] O
meticuloso trabalho de estabelecer relações proveitosas com outras disciplinas,
ciências e culturas para melhor iluminar e ampliar esses caminhos é tarefa
especial dos teólogos, e o discernimento dos sinais dos tempos apresenta
grandes oportunidades para o trabalho teológico, apesar das complexas questões
hermenêuticas que possam surgir. Graças ao trabalho de muitos teólogos, o
Concílio Vaticano II foi capaz de reconhecer vários sinais dos tempos em relação
ao próprio ensinamento.
Prestando atenção à palavra final de Deus em Jesus Cristo, os cristãos
estão abertos para ouvir ecos de sua voz em outras pessoas, lugares e culturas
(cf. At 14,15-17; 17,24-28; Rm 1,19-20). O Concílio exortou os fiéis a
“familiarizarem-se com suas tradições nacionais e religiosas. Com alegria e
respeito descubram as sementes do Verbo aí ocultas”. Ele ensinou
especificamente que a Igreja Católica nada rejeita do que é “verdadeiro e
santo” nas religiões não cristãs, cujos preceitos e doutrinas “muitas vezes,
refletem lampejos daquela Verdade que ilumina” todas as pessoas. Ainda,
conduzir a descoberta de tais sementes e ao discernimento desses raios de luz é
especialmente a tarefa dos teólogos, que têm uma importante contribuição a dar
ao diálogo inter-religioso.
Um critério da teologia católica
é que ela deve estar em constante diálogo com o mundo. Ela deve ajudar a Igreja
a ler os sinais dos tempos, iluminados pela luz que vem da revelação divina, e
nisso fazer ganhar em sua vida e missão.
VERDADE DE DEUS
A Palavra de Deus, acolhida na
fé, ilumina a inteligência e a compreensão do crente. A Revelação não é
recebida pela mente humana de forma puramente passiva. Pelo contrário, a
inteligência, ao acreditar, abraça ativamente a verdade revelada. Alertada pelo
amor, ela se esforça para assimilá-la, porque esta Palavra responde as suas
próprias perguntas mais profundas. Sem pretender nunca esgotar as riquezas da
Revelação, ela se esforça para apreciar e explorar a inteligibilidade da
Palavra de Deus – fides quaerens intellectum – e oferecer uma explicação
racional da verdade de Deus. Em outras palavras, procura expressar a verdade de
Deus de modo racional e científico, o que é próprio do entendimento humano.
Em uma investigação tríplice,
abordando uma série de questões atuais, o presente capítulo considera aspectos
essenciais da teologia enquanto um esforço humano racional, que tem a sua
posição autêntica e insubstituível em meio a toda a investigação intelectual.
Primeiro, a teologia é uma obra da razão iluminada pela fé (ratio fide
illustrata), que procura traduzir para o discurso científico a Palavra de Deus
expressa na revelação. Segundo, a variedade dos métodos racionais, empregados
por ela, e da pluralidade de disciplinas teológicas especializadas que daí
resultam, são compatíveis com a unidade fundamental da teologia enquanto
discurso sobre Deus à luz da Revelação. Terceiro, a teologia está
estreitamamente ligada à experiência espiritual, que ela ilumina e que, por sua
vez, é alimentada, e que, por sua natureza, abre-se para uma sabedoria
autêntica com um vivo sentido da transcendência do Deus de Jesus Cristo.
A verdade de Deus e a
racionalidade da teologia
Esta seção considera alguns
aspectos da história da teologia, dos desafios dos primeiros tempos com os de
hoje, em relação à natureza científica da teologia. Somos chamados a conhecer
Deus, a conhecer a verdade sobre Deus. “Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam
a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele a quem enviaste, Jesus Cristo” (Jo
17,3). Jesus veio para dar testemunho da verdade (cf. Jo 18,37) e se apresentou
como “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Essa verdade é um dom que desce
do “Pai das luzes” (Tg 1,17). Deus Pai iniciou esta obra de esclarecimento (cf.
Gl 4,4-7), e ele mesmo vai consumá-la (cf. Apoc 21,5-7). O Espírito Santo é
tanto o Paráclito, que consola os fiéis, quanto o “Espírito da verdade” (Jo
14,16-17), que inspira e ilumina a verdade e guia os fiéis “à verdade plena”
(Jo 16,13). A revelação final da plenitude da verdade de Deus será o
cumprimento final da humanidade e da criação (cf. 1Cor 15,28).
Correspondentemente, o mistério da Trindade deve estar no centro de
contemplação teológico.
A verdade de Deus, acolhida na
fé, encontra a razão humana. Criada à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27),
a pessoa humana é capaz, graças à luz da razão, de penetrar além das aparências
até a verdade profunda das coisas, abrindo-se, assim, para a realidade
universal. A referência comum à verdade, que é objetiva e universal, torna
possível o diálogo autêntico entre as pessoas humanas. O espírito humano é
tanto intuitivo quanto racional. É intuitivo enquanto apreende espontaneamente
os primeiros princípios da realidade e do pensamento. É racional enquanto, a
partir desses primeiros princípios e utilizando procedimentos rigorosos de
análise e investigação, progressivamente ela descobre verdades anteriormente
desconhecidas e as organiza de forma coerente. A “ciência” é a forma mais
elevada que pode assumir a consciência racional. Designa uma forma de
conhecimento capaz de explicar como e por que as coisas são como são. A razão
humana, ela própria partindo da realidade criada, não se limita simplesmente a
projetar sobre a realidade, com sua riqueza e complexidade, uma estrutura de
inteligibilidade, mas se adapta à inteligibilidade intrínseca da realidade. De
acordo com o seu objeto, ou seja, com o aspecto particular da realidade que
está estudando, a razão aplica métodos diferentes, adaptados ao próprio objeto.
Racionalidade, portanto, é una, mas assume uma pluralidade de formas, e todas
são instrumentos rigorosos para adquirir a inteligibilidade da realidade. A
ciência é da mesma forma pluriforme, enquanto cada ciência tem seu objeto e
método específicos. Há uma tendência moderna de reservar o termo “ciência” só
para as “ciências exatas” ou hards sciences (matemática, ciências
experimentais, etc.) e de considerar como conhecimento irracional ou simples
opinião o conhecimento que não corresponde aos critérios destas ciências. Essa
visão unívoca da ciência e da racionalidade é redutiva e inadequada.
Assim, a verdade revelada de Deus
ao mesmo tempo exige e estimula a razão do crente. Por um lado, a verdade da
Palavra de Deus deve ser examinada e investigada pelo crente – assim que tem
início o intellectus fidei, a forma assumida aqui na terra pelo desejo do
crente de ver a Deus. O seu objetivo não é o de substituir a fé, mas ele se
desdobra naturalmente do ato de fé do crente, e pode realmente ajudar aquele
cuja fé pode vacilar diante da hostilidade. O fruto da reflexão racional do
crente é uma compreensão das verdades da fé. Pelo uso da razão, o crente
apreende as conexões profundas entre as diversas etapas da história da salvação
e, também, entre os diversos mistérios da fé, que se iluminam reciprocamente.
Por outro lado, a fé estimula a própria razão em si e alarga os seus limites. A
razão é estimulada a explorar caminhos que, sozinha, não teria sequer suspeita
que pudesse percorrer. A razão sai enriquecida com esse encontro com a Palavra
de Deus, porque descobre horizontes novos e inesperados.
O diálogo entre fé e razão, entre teologia e filosofia, é necessário não
só à fé, mas também à razão, como explica o Papa João Paulo II na Fides et
Ratio. É necessário porque uma fé que rejeita ou despreza a razão arrisca cair
na superstição ou no fanatismo, enquanto uma razão que deliberadamente se fecha
para a fé, embora possa fazer grandes progressos, não alcançará a máxima
possibilidade do que pode ser conhecido. Esse diálogo é possível graças à
unidade da verdade na variedade dos seus aspectos. As verdades abraçadas na fé
e as verdades descobertas pela razão não só não podem, em última análise, se
contradizerem, já que procedem da mesma fonte, a própria verdade de Deus, o
criador da razão e o doador da fé, mas, na verdade, se apoiam e se esclarecem
uma à outra: “A reta razão demonstra os fundamentos da fé, e, iluminada pela
luz desta última, cultiva o entendimento das coisas divinas, enquanto a fé
liberta e protege a razão de erros e lhe proporciona conhecimentos numerosos”.
Essa é a razão profunda por que, mesmo que a religião e a filosofia
estivessem muitas vezes opostas no pensamento antigo, desde o início a fé
cristã as reconciliou em uma visão mais ampla. Com efeito, ao tomar a forma de
religião, o cristianismo primitivo frequentemente pensava a si mesmo não como
uma nova religião, mas sim como uma verdadeira filosofia, agora capaz de
atingir a verdade última. O cristianismo entendia poder ensinar a verdade tanto
sobre Deus quanto sobre a existência humana. Portanto, em seu compromisso com a
verdade, os Padres da Igreja deliberadamente criaram uma distância entre a sua
teologia e a teologia “mítica” e “política”, asssim como essas foram entendidas
na época. A teologia mítica narrava as histórias dos deuses de uma forma que
não respeitava a transcendência do divino; a teologia política consistia em uma
abordagem puramente sociológica e utilitarista da religião, que não se
preocupam com a verdade. Os Padres da Igreja colocavam o cristianismo ao lado
da “teologia natural”, que pretendia oferecer uma explicação racional sobre a
“natureza” dos deuses. No entanto, ao ensinar que o Logos, o princípio de todas
as coisas, era um ser pessoal com um rosto e um nome, e que este estava à
procura de amizade com a humanidade, o cristianismo purificou e transformou a
ideia filosófica de Deus, e a introduziu no dinamismo do amor (agape).
Os grandes teólogos do Oriente
usaram o encontro entre o cristianismo e a filosofia grega como uma
oportunidade providencial para refletir sobre a verdade da revelação, ou seja,
a verdade do logos. A fim de defender e iluminar os mistérios da fé (a
consubstancialidade das pessoas da Trindade, a união hipostática, etc.),
prontamente eles adotaram, mas de forma crítica, as noções filosóficas e
colocaram-nas a serviço de uma compreensão da fé. No entanto, eles também
insistiram fortemente na dimensão apofática da teologia: a teologia jamais deve
reduzir o Mistério. No Ocidente, no final do período patrístico, Boécio
inaugurou um modo de fazer teologia que acentuava a natureza científica do
intellectus fidei. Em sua opuscula sacra, ele recolheu todos os recursos da
filosofia, colocando-os a serviço do esclarecimento da doutrina cristã, e
ofereceu uma exposição sistemática e axiomática da fé. Este novo método
teológico, que utilisa sofisticadas ferramentas filosóficos e visa a certa
sistematização, também foi desenvolvido, em certa medida, no Oriente, por
exemplo, com São João Damasceno.
Durante todo o período medieval,
especialmente com a fundação das universidades e o desenvolvimento da
metodologia escolástica, a teologia progressivamente se diferenciou, embora não
necessariamente separada, de outras formas do intellectus fidei (por exemplo, a
lectio divina, a pregação). Ela se constituiu verdadeiramente como ciência, de
acordo com critérios de ciência estabelecidos por Aristóteles, especialmente em
sua Posteriora analyticorum: isto é, pelo raciocínio é possível demostrar por
que algo é assim e não de outra forma, e pelo raciocínio é possível chegar a
conclusões partindo dos princípios. Os teólogos escolásticos procuravam
apresentar o conteúdo inteligível da fé cristã na forma de uma síntese racional
e científica. Para fazer isso, eles consideraram os artigos de fé como
princípios na ciência da teologia. Em seguida, os teólogos fizeram uso da razão
para estabelecer com precisão a verdade revelada e para defendê-la, mostrando
que ela não era contrária à razão, ou mostrando sua inteligibilidade interna.
No último caso, eles formulavam uma hierarquia (ordo) de verdades, procurando
as que fossem fundamentais entre todas e, portanto, pudessem iluminar as
demais. Articulando as conexões inteligíveis entre os mistérios (nexus
mysteriorum), e as sínteses que alcançaram, expunham o conteúdo inteligível da
Palavra de Deus de uma forma científica, de acordo com as exigências e as
capacidades da razão humana. Esse ideal científico, porém, nunca tomou a forma
de um sistema hipotético-dedutivo racionalista. Pelo contrário, ele sempre foi
modelado sobre a realidade que era contemplada, o que ultrapassa as capacidades
da razão humana. Além disso, mesmo que os teólogos escolásticos tivessem
empreendido vários exercícios e usado gêneros literários distintos para o
comentário das escrituras, a Bíblia era a fonte viva de inspiração dos teólogos
escolásticos: a teologia visava precisamente a uma melhor compreensão da
Palavra, a ponto de São Boaventura e São Tomás de Aquino se considerarem
fundamentalmente como magistri in sacra pagina. O papel desempenhado pelo
“argumento de conveniência” (argumentum ex convenientia) foi crucial. O teólogo
não raciocina a priori, mas ausculta a revelação e procura os caminhos de
sabedoria que Deus escolheu livremente em seu plano de amor. Firmemente,
baseada na fé, portanto, a teologia se entendeu como uma participação humana no
conhecimento que Deus tem de si mesmo e de todas as coisas, “quaedam impressio
divinae scientiae quae est una et simplex omnium”. Essa foi a fonte primária de
sua unidade.
Por volta do final da Idade
Média, a estrutura unificada da sabedoria cristã, da qual a teologia era a
pedra angular, começou a desmoronar. A filosofia e as outras disciplinas
seculares se separaram cada vez mais da teologia, e a própria teologia se
fragmentou em diversas especializações que, por vezes, perderam de vista a sua
profunda ligação. Houve uma tendência da teologia de distanciar-se da Palavra
de Deus, tornando-se, em alguns casos, uma reflexão puramente filosófica
aplicada a questões religiosas. Ao mesmo tempo, talvez devido a esse abandono
das Escrituras, perderam-se de vista a sua dimensão teo-lógica e a sua
finalidade espiritual, e a vida espiritual começou a se desenvolver
separadamente de uma teologia universitária racional e, até mesmo, em oposição
a esta última. A teologia, assim fragmentada, tornou-se cada vez mais afastada
da vida real do povo cristão e menos preparada para enfrentar os desafios da
modernidade.
A teologia escolástica foi
criticada durante a Reforma por ter atribuído um valor excessivo à
racionalidade da fé e por ter dado muito pouco peso ao dano do pecado à razão.
A teologia católica respondeu, mantendo em alta estima a antropologia da imagem
de Deus (imago Dei) e a capacidade e responsabilidade da razão, ferida mas não
destruída pelo pecado, e enfatizando a Igreja como o lugar onde Deus pode ser
verdadeiramente conhecido e a ciência da fé verdadeiramente desenvolvida. A
Igreja Católica, assim, manteve aberta a possibilidade de diálogo com a filosofia,
filologia e as ciências históricas e naturais.
A crítica feita à fé e à teologia
durante o Iluminismo, no entanto, foi mais radical. Em alguns aspectos, o
Iluminismo teve um estímulo religioso. No entanto, alinhando-se com o deísmo,
pensadores iluministas, agora, viam uma diferença irreconciliável entre os
fatos contingentes da história e as genuínas necessidades da razão. A verdade,
para eles, não era para ser buscada na história, e a revelação, enquanto evento
histórico, não poderia mais servir como uma fonte confiável de conhecimento
para os seres humanos. Em muitos casos, a teologia católica reagiu
defensivamente contra o desafio do pensamento iluminista. Deu prioridade mais à
apologética do que à dimensão sapiencial da fé; fez uma separação excessiva
entre a ordem natural da razão e a ordem sobrenatural da fé, e deu grande
importância à “teologia natural” e muito pouco ao intellectus fidei na
compreensão dos mistérios da fé. Nesse encontro, a teologia católica foi assim
danificada em vários aspectos por sua própria estratégia. Na melhor das
hipóteses, no entanto, a teologia católica também buscou um diálogo construtivo
com o Iluminismo e com a sua crítica filosófica. Com referência à Escritura e
ao ensino da Igreja, foi criticado teologicamente um conceito meramente
“instrutivo” de revelação, e o conceito de revelação foi reformulado em termos
da autorrevelação de Deus em Jesus Cristo, de tal forma que a história ainda
pudesse ser entendida como o lugar de atos salvíficos de Deus.
Hoje há um novo desafio, e a teologia católica deve afrontar uma crise
pós-moderna da própria razão clássica, que tem sérias implicações para o
intellectus fidei. O conceito de “verdade” parece muito problemático. Existe
verdadeiramente a “verdade”? Existe apenas uma “verdade”? Será que tal conceito
pode levar à intolerância e à violência? A teologia católica tradicionalmente
trabalha com um forte sentido da capacidade da razão de ir além das aparências
e alcançar a realidade e a verdade das coisas, mas a razão, hoje, é
frequentemente percebida como fraca e substancialmente incapaz de atingir a
“realidade”. Há, portanto, um problema enquanto a orientação metafísica da
filosofia, que foi importante para os modelos precedentes da teologia católica,
continua em crise profunda. A teologia pode ajudar a superar essa crise e a
revitalizar uma metafísica autêntica. A teologia católica, no entnato, está
interessada a entrar em diálogo sobre a questão de Deus e da verdade com todas
as filosofias contemporâneas.
Na Fides et Ratio, o Papa João Paulo II rejeitou tanto o ceticismo
filosófico quanto o fideísmo e convoca a uma renovação da relação entre
teologia e filosofia. Ele reconheceu a filosofia como ciência autônoma e como
um interlocutor crucial para a teologia. Ele insistiu que a teologia deve
necessariamente recorrer à filosofia: sem a filosofia, a teologia não pode
criticar adequadamente a validade de suas afirmações, nem esclarecer suas
ideias, nem compreender corretamente as diferentes escolas de pensamento.
“Ponto de partida e fonte” da teologia é a palavra de Deus revelada na
história, e a teologia procura entender essa palavra. Todavia, a palavra de
Deus é a Verdade (cf. Jo 17,17), e daí segue que a filosofia, “a busca humana
da verdade”, pode contribuir para a compreensão da palavra de Deus.
Um critério da teologia católica é que ela deve se esforçar para fazer
uma apresentação científica e racional das verdades da fé cristã. Para isso,
necessita fazer uso da razão e deve reconhecer a forte relação entre a fé e a
razão, em primeiro lugar razão filosófica, de modo a superar tanto o fideísmo
quanto o racionalismo.
A unidade da Teologia na pluralidade de métodos e disciplinas
Esta seção considera a relação entre teologia e teologias, e também a
relação entre a teologia e as outras ciências. A teologia católica,
fundamentalmente entendida com Santo Agostinho como “raciocínio ou discurso
sobre Deus”, na sua essência é una e, enquanto ciência, tem características
distintas: seu objeto é o Deus uno e único, e estuda o seu sujeito de forma
própria a ela própria, ou seja, com o uso da razão iluminada pela revelação.
Logo no início da Summa theologiae, São Tomás explica que tudo na teologia é
entendido em relação a Deus, sub ratione Dei. A grande diversidade de questões
que o teólogo é chamado a considerar encontra a sua unidade nesta referência
última a Deus. Todos os “mistérios” contidos nos diversos tratados teológicos
se referem ao que é, no sentido mais estrito, o único mistério absoluto, ou
seja, o Mistério de Deus. A referência a esse Mistério une a teologia, na vasta
gama de temas e contextos que essa tem, e o conceito de reductio in Mysterium
pode ser avaliado como uma expressão do dinamismo que une profundamente as
proposições teológicas. Já que o mistério de Deus se revela em Cristo pelo
poder do Espírito Santo, o Concílio Vaticano II determinou que todos os
tratados teológicos fossem “restaurados por um contato mais vivo com o Mistério
de Cristo e a história da salvação”.
Os Padres da Igreja conheciam o termo “teologia” somente na forma
singular. Para eles, a “teologia” não era “mito”, mas o Logos do próprio Deus.
Na medida em que o espírito humano é impresso pelo Espírito de Deus através da
revelação do Logos e levado a contemplar o mistério infinito de sua natureza e
ação, os seres humanos também são capazes de fazer teologia. Na teologia
escolástica, a diversidade de questões estudadas pelos teólogos pode justificar
o uso de vários métodos, mas nunca era colocada em dúvida a unidade fundamental
da teologia. Por volta do final da Idade Média, no entanto, houve uma tendência
de distinguir e até mesmo de separar teologia escolástica e teologia mística,
teologia especulativa e teologia positiva, e assim por diante. Nos tempos
modernos, tem havido uma tendência crescente de usar a palavra “teologia” no
plural. Fala-se das “teologias” de diferentes autores, épocas ou culturas,
tendo em mente os conceitos característicos, temas significativos e
perspectivas específicas dessas “teologias”.
Vários fatores contribuíram para essa pluralidade moderna de
“teologias”.
– Dentro da teologia há cada vez mais especialização interna em
disciplinas diferentes. Por exemplo, estudos bíblicos, liturgia, patrística,
história da Igreja, teologia fundamental, teologia sistemática, teologia moral,
teologia pastoral, espiritualidade, catequese e direito canônico. Esse
desenvolvimento é inevitável e compreensível por causa da natureza científica
da teologia e das demandas de pesquisa.
– Há uma diversificação dos estilos teológicos por causa da influência
externa de outras ciências. Por exemplo, filosofia, história e ciências
sociais, naturais e da vida. Como resultado, nos âmbitos centrais da teologia
católica de hoje, coexistem formas muito diferentes de pensar. Por exemplo,
teologia transcendental e teologia da história da salvação, teologia analítica,
renovada teologia escolástica e metafísica, teologia política e teologia da
libertação.
– No que diz respeito à prática da teologia, cresce constantemente a
multiplicidade de temas, lugares, instituições, intenções, contextos e
interesses, e uma nova valorização da pluralidade e variedade das
culturas.[134]
A pluralidade de teologias é, sem
dúvida, necessária e justificada. Isso resulta, antes de tudo, da abundância da
verdade divina, que os seres humanos só podem apreender em seus aspectos
específicos e nunca em sua totalidade, e, além disso, nunca definitivamente,
mas sempre, por assim dizer, com novos olhos. Além disso, em razão da
diversidade dos objetos que ele considera e interpreta (por exemplo, Deus, os
seres humanos, os eventos históricos, os textos), e a própria diversidade dos
questionamentos humanos, a teologia deve, inevitavelmente, recorrer a uma
pluralidade de disciplinas e métodos, de acordo com a natureza do objeto a ser
estudado. A pluralidade de teologias reflete, de fato, a catolicidade da
Igreja, que se esforça para proclamar o único Evangelho às pessoas de toda
parte e em todos os tipos de circunstâncias.
A pluralidade,
naturalmente, tem seus limites. Há uma diferença fundamental entre o legítimo
pluralismo da teologia, por um lado, e do relativismo, heterodoxia ou heresia,
por outro. O próprio pluralismo, todavia, é problemático se não houver
comunicação entre as diferentes disciplinas teológicas ou se não houver
critérios concordes pelos quais as várias formas de teologia possam ser
compreendidas – para si mesma e para os outros – como teologia católica.
Essencial para evitar ou superar esses problemas é um reconhecimento comum
fundamental da teologia como um empreendimento racional, scientia fidei e
scientia Dei, de tal forma que cada teologia possa ser avaliada em relação a
uma verdade comum universal.
A busca da unidade entre a pluralidade das teologias assume, hoje,
numerosas formas: a insistência na referência a uma tradição eclesial comum da
teologia; o exercício do diálogo e da interdisciplinaridade; e a atenção para
evitar que as outras disciplinas com as quais a teologia entre em contato
imponham o seu próprio “magistério” à teologia. A existência de uma tradição
teológica comum na Igreja (que deve ser distinta da Tradição em si, mas não
separada dela) é um fator importante para a unidade da teologia. Na teologia há
uma memória comum, de tal forma que algumas conquistas históricas (por exemplo,
os escritos dos Padres da Igreja, tanto no Oriente quanto no Ocidente, e a
síntese de Santo Tomás, o Doctor communis), permanecem como pontos de
referência para a teologia de hoje. É verdade que alguns aspectos da tradição
teológica anterior, por vezes, podem e devem ser abandonados, mas o trabalho do
teólogo nunca pode dispensar uma referência crítica à Tradição que a precedeu.
As várias formas de teologia, que
basicamente podem ser hoje identificadas (por exemplo, teologia bíblica,
histórica, fundamental, sistemático, prática, moral), caracterizadas por suas
diversas fontes, métodos e tarefas, estão fundamentalmente unidas pelo esforço
de buscar o conhecimento verdadeiro de Deus e do plano salvífico de Deus. Entre
eles deve, portanto, haver intensa comunicação e cooperação. O diálogo e a
colaboração interdisciplinar são meios indispensáveis para garantir e
exprimir a unidade da teologia. “Teologia”, no singular, de forma alguma indica
uma uniformidade de estilos ou conceitos, mas sim, indica uma busca comum da
verdade, um serviço comum ao corpo de Cristo e devoção comum ao único Deus.
. Desde os tempos antigos, a teologia tem trabalhado em parceria com a
filosofia. Embora essa associação continue a ser fundamental, em tempos
modernos, a teologia encontrou outras formas de colaboração. Os estudos
bíblicos e a história da Igreja foram ajudados pelo desenvolvimento de novos
métodos de análise e de interpretação dos textos, e por novas técnicas para
verificar a validade histórica das fontes e descrever os desenvolvimentos
sociais e culturais. A teologia sistemática, fundamental e a moral tiveram
benefícios com o encontro com as ciências naturais, econômicos e médicas. A
teologia prática lucrou com o encontro com a sociologia, a psicologia e a
pedagogia. Em todos esses contatos, a teologia católica deveria respeitar a
coerência própria dos métodos e das ciências utilizados, mas também deveria
usá-los de forma crítica, à luz da fé, que é parte da própria identidade e da
motivação do teólogo. Os resultados parciais, obtidos através de um método
emprestado de outra disciplina, não podem ser determinantes para o trabalho do
teólogo, e devem ser integrados criticamente na própria tarefa e argumentação
da teologia. A um uso insuficientemente crítico do conhecimento ou de métodos
de outras ciências provavelmente conduzirá a uma distorção e fragmentação do
trabalho da teologia. Na verdade, uma fusão apressada entre fé e filosofia já
foi identificada pelos Padres como uma fonte de heresias. Em suma, não deve
consentir às outras disciplinas impor seu próprio “magistério” à teologia. O
teólogo deve certamente tomar e utilizar os dados fornecidos por outras
disciplinas, mas à luz dos princípios e dos métodos próprios da teologia.
. Nessa assimilação e integração crítica pela teologia dos dados
provenientes de outras ciências, a filosofia exerce um papel de mediadora. Diz
respeito à filosofia, como a sabedoria racional, inserir os resultados obtidos
por várias ciências em uma visão mais universal. O recurso à filosofia, nesse
seu papel de mediadora, ajuda o teólogo a usar os dados científicos com o
devido cuidado. Por exemplo, os conhecimentos científicos adquiridos em relação
à evolução da vida devem ser interpretados à luz da filosofia, para determinar
o seu valor e o seu significado, antes de ser levado em conta pela teologia. A filosofia, além disso, ajuda os cientistas a
evitar a tentação de aplicar de modo unívoco os seus próprios métodos e os
frutos de suas pesquisas a questões religiosas, que exigem uma abordagem
diferente.
A relação entre a teologia e as ciências religiosas ou estudos
religiosos (por exemplo, a filosofia da religião, a sociologia da religião) é
de particular interesse. As ciências religiosas e os estudos religiosos lidam
com textos, instituições e os fenômenos da tradição cristã, mas, devido à
natureza dos seus princípios metodológicos, esse estudo é feito a partir do
exterior, sem interrogar sobre a verdade daquilo que vem estudado; para eles, a
Igreja e sua fé são simplesmente objetos de pesquisa iguais a quaisquer outros
objetos. No século XIX, houve controvérsias notáveis entre teologia e as
ciências e os estudos religiosos. Por um lado, foi alegado que a teologia não
era uma ciência por causa de seus pressupostos de fé; somente as ciências e os
estudos religiosos podiam ser “objetivos”. De outro lado, foi afirmado que as
ciências e os estudos religiosos são anti-teológicos, porque negariam a fé.
Hoje essas controvérsias antigas reaparecem vez por outra, mas atualmente
existem melhores condições para um diálogo frutífero entre as duas partes. Por
um lado, as ciências e os estudos religiosos, agora, estão integrados no tecido
dos métodos teológicos, não só pela exegese e a história da Igreja, mas também
pela teologia pastoral e fundamental, pois é necessário investigar a história,
a estrutura e a fenomenologia de idéias, temas, ritos religiosos, etc. De outro
lado, as ciências físicas e a epistemologia contemporânea em geral têm
demonstrado que nunca há uma posição neutra a partir da qual se procura a
verdade; o estudioso sempre traz perspectivas particulares, intuições e
pressupostos que incidem sobre o estudo que está realizando. Resta, porém, uma
diferença essencial entre teologia e as ciências e os estudos da religião: a
teologia tem a verdade de Deus como seu objeto e o reflete com fé e à luz de
Deus, enquanto que as ciências e os estudos religiosos têm como seu objeto os
fenômenos religiosos e se aproximam deles com interesse cultural,
metodologicamente prescindindo da verdade da fé cristã. A teologia, refletindo
a partir do interior da Igreja e de sua fé, vai além das ciências e dos estudos
religiosos, e também pode se beneficiar com as investigações que elas fazem do
lado externo.
A teologia católica reconhece a
justa autonomia das outras ciências, a competência profissional e o esforço
pelo conhecimento que aí pode ser encontrado, e, por sua vez, estímulo de
desenvolvimento para muitas ciências. A teologia também abre caminho através do
qual outras ciências possam se envolver com questões religiosas. Através da
crítica construtiva, ajuda as outras ciências a libertarem-se dos elementos
antiteológicos adquiridos sob a influência do racionalismo. Expulsando a
teologia da categoria de ciência, o racionalismo e o positivismo reduziram o
alcance e as potencialidades das próprias ciências. A teologia católica critica
toda forma de autoabsolutização das ciências, enquanto autorredutiva e
empobrecedora. A presença da teologia e dos teólogos no coração da vida
universitária e o diálogo com outras disciplinas, possível por tal presença,
contribui para promover uma visão ampla, analógica e integral da vida
intelectual. Como scientia Dei e scientia fidei, a teologia desempenha um papel
importante na sinfonia das ciências, e, assim, reivindica um justo lugar na
academia.
. Um critério da teologia católica é que ele tenta integrar uma
pluralidade de questões e métodos para o projeto unificado do intellectus
fidei, e insiste na unidade da verdade e, portanto, sobre a unidade fundamental
da própria teologia. A teologia católica reconhece os métodos próprios de
outras ciências e os utiliza criticamente em sua própria pesquisa. Ela não se
isola da crítica e está aberta ao diálogo científico.
Ciência e sabedoria
A ciência, mas também uma
sabedoria, com um papel especial a desempenhar na relação entre todo o
conhecimento humano e o Mistério de Deus. A pessoa humana não se satisfaz com
verdades parciais, mas procura unificar elementos e áreas do conhecimento
diferentes em uma compreensão da verdade última de todas as coisas e da própria
vida humana. Essa busca pela sabedoria é que, sem dúvida, anima a própria
teologia, e a põe em uma estreita relação com a experiência espiritual e com a
sabedoria dos santos. Em um sentido mais amplo, no entanto, a teologia católica
convida a todos a reconhecerem a transcendência da Verdade última, que nunca
pode ser plenamente compreendida ou conhecida. A teologia não é apenas uma
sabedoria em si mesma, mas é também um convite à sabedoria para outras
disciplinas. A presença da teologia no debate científico e na vida
universitária, potencialmente, tem o efeito benéfico de recordar a todos a
vocação sapiencial da vocação humana, referindo-se a significativa interrogação
feita por Jesus nas primeiras palavras por ele pronunciadas no evangelho de João:
“Que procurais?” (Jo 1,38).
No Antigo Testamento, a mensagem central da teologia da sabedoria
aparece três vezes: “O princípio da sabedoria é temer o Senhor” (Sl 111,10; cf.
Pr 1;7; 9,10). A base desta afirmação é a intuição dos sábios de Israel que a
sabedoria de Deus age na obra da criação e na história e que, quem compreende
isso, irá compreender o significado do mundo e dos acontecimentos (cf. Pr 7ss;
Sb 7ss). O “temor de Deus” é a atitude justa na presença de Deus (coram Deo). A
sabedoria é a arte de conhecer o mundo e de orientar a própria vida à devoção a
Deus. Nos livros de Eclesiastes e Jó, os limites da compreensão humana dos
pensamentos e dos caminhos de Deus são duramente revelados, não para destruir a
sabedoria dos seres humanos, mas para aprofundá-la dentro do horizonte da
sabedoria de Deus.
Transformada a teologia da
revelação do Antigo Testamento. Ele rezou assim: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do
céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as
revelaste aos pequeninos" (Mt 11,25). Esta confusão de sabedoria
tradicional se situa no contexto evangélico da proclamação de algo novo: a
revelação escatológica do amor de Deus na pessoa de Jesus Cristo. E Jesus
continua: “ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o
Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”, e isso para chegar ao seu
famoso convite: “Vinde a mim todos vós que estais cansados sob o peso do
vosso fardo e vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de
mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as
vossas almas” (Mt 11,27-29). Esse aprendizado resulta do discipulado na
companhia de Jesus. Somente ele desvela as Escrituras (cf. Lc 24,25-27; Jo
5,36-40, Apoc 5,5), porque a verdade e sabedoria de Deus foram reveladas por
ele.
O apóstolo Paulo critica a “sabedoria do mundo”, que considera a cruz de
Jesus Cristo apenas como “loucura” (1Cor 1,18-20). Essa loucura, proclama
Paulo, é “sabedoria de Deus, misteriosa e oculta”, “que Deus, antes dos séculos
destinou para nossa glória” e agora foi revelada (1Cor 2,7). A cruz é o momento
crucial do plano salvífico de Deus. Cristo crucificado é o “poder de Deus e
sabedoria de Deus” (1Cor 1,18-25). Os crentes, aqueles que possuem “o
pensamento de Cristo” (1Cor 2,16), recebem essa sabedoria, que dá acesso ao
“mistério de Deus” (1Cor 2,1-2). É importante notar que a sabedoria paradoxal
de Deus, manifestada na cruz, contradiz a “sabedoria do mundo”; no entanto,
nunca contradiz a sabedoria humana autêntica. Pelo contrário, a transcende e a
preenche de um modo imprevisto.
. A fé cristã cedo entrou em contato com a busca grega pela sabedoria.
Ela chamou a atenção aos limites dessa busca, especialmente em relação à ideia
de salvação através apenas do conhecimento (gnosis), mas também incorporou
algumas intuições autênticas dos gregos. A sabedoria é uma visão unificadora.
Enquanto a ciência se esforça para se dar conta de um aspecto da realidade
particular, limitada e bem definida, destacando os princípios que explicam as
propriedades do objeto de estudo, a sabedoria se esforça para dar uma visão
unificada de toda a realidade. Trata-se, com efeito, de um conhecimento segundo
as causas mais altas, mais universais e também mais explicativas. Para os
Padres da Igreja, o sábio era quem julgava todas as coisas à luz de Deus e das
realidades eternas, que são a norma para as coisas aqui na terra. Portanto, a
sabedoria tem também uma dimensão moral e espiritual.
Como o próprio nome indica, a filosofia é entendida como uma sabedoria,
ou, pelo menos, como uma busca amorosa de sabedoria. A metafísica, em
particular, propõe uma visão da realidade unificada em torno do mistério
fundamental do ser; mas a Palavra de Deus, que revela “o que os olhos não
viram, os ouvidos não ouviram, e o coração humano não percebeu” (1Cor 2,9),
abre aos seres humanos o caminho para uma sabedoria superior. Essa sabedoria
sobrenatural cristã, que transcende a sabedoria puramente humana da filosofia,
assume duas formas que se sustentam reciprocamente, mas não devem ser
confundidas: a sabedoria teológica e a sabedoria mística. A sabedoria teológica
é obra da razão iluminada pela fé. É, portanto, uma sabedoria adquirida, que,
evidentemente, supõe o dom da fé. Ela oferece uma explicação unificada da
realidade à luz das mais altas verdades da revelação, e ela tudo ilumina, desde
o mistério fundamental da Trindade, considerado tanto em si mesmo quanto na sua
ação na criação e na história. A esse respeito, o Vaticano I afirmou: “A razão,
quando iluminada pela fé e a busca diligentemente, piedosa e sobriamente,
alcança, com a ajuda de Deus, alguma compreensão dos mistérios, já frutífera
por si mesma, tanto por analogia com as coisas que já conhece naturalmente,
quanto também por conexão dos mistérios entre si e com o fim último do homem”.
A contemplação intelectual que resulta do trabalho racional do teólogo é,
portanto, uma verdadeira sabedoria. A sabedoria mística ou “o conhecimento dos
santos” é um dom do Espírito Santo, que vem da união com Deus no amor. O amor,
na verdade, cria uma eficaz conaturalidade afetiva entre o ser humano e Deus,
que permite às pessoas espirituais conhecer e, até mesmo, sofrer as coisas
divinas (pati divina), experimentando-o realmente em suas vidas. Trata-se de um
conhecimento não conceitual, muitas vezes expresso em poesia. Ele leva à
contemplação e à união pessoal com Deus na paz e no silêncio.
A sabedoria teológica e a sabedoria mística são formalmente distintas, e
é importante não confundi-las. A sabedoria mística nunca é um substituto para a
sabedoria teológica. É evidente, porém, que existem fortes ligações entre essas
duas formas de sabedoria cristã, tanto na pessoa do teólogo quanto na
comunidade eclesial. Por um lado, uma intensa vida espiritual, a busca da
santidade é uma exigência para a teologia autêntica, como demonstra o exemplo
dos doutores da Igreja, do Oriente e do Ocidente. A verdadeira teologia
pressupõe fé e é animada pela caridade: “Aquele que não ama não conheceu a
Deus, porque Deus é Amor” (1Jo 4,8). A inteligência dá à teologia a razão, a
visão clara, mas o coração tem sua própria sabedoria que purifica a
inteligência. O que é verdade para todos os cristãos, ou seja, que eles são
“chamados a ser santos” (1Cor 1,2), tem uma ressonância particular para os
teólogos. Por outro lado, o desempenho correto da tarefa teológica, de dar uma
compreensão científica da fé, permite verificar a autenticidade da experiência
espiritual. É por isso que Santa Teresa de Ávila queria que suas religiosas
procurassem o conselho dos teólogos: “Quanto mais o Senhor vos concede graças
em vossas orações, tanto mais é necessário que as vossas orações e os vossos
demais trabalhos apoiem-se sobre uma base sólida”.[153] Em última análise, é a
tarefa do Magistério, com a ajuda dos teólogos, determinar se qualquer
pretensão espiritual é autenticamente cristã.
. O objeto da teologia é o Deus vivo, e a vida do teólogo não pode
deixar de ser marcada pelo esforço constante para conhecer o Deus vivo. O
teólogo não pode excluir da sua própria vida o esforço para compreender toda a
realidade em relação a Deus. A obediência à verdade purifica a alma (cf. 1Pd
1,22), e “a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica,
indulgente, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, isenta de parcialidade
e de hipocrisia” (Tg 3,17). Em consequência, a busca teológica deve purificar a
mente e o coração do teólogo. Essa característica especial do trabalho
teológico não viola de modo algum o caráter científico da teologia; pelo
contrário, é profundamente concorde. Assim, a teologia é caracterizada por uma
espiritualidade distinta, cujos elementos integrais são: um amor à verdade, uma
prontidão para a conversão do coração e da mente, um esforço para com a
santidade e um compromisso de comunhão eclesial e de missão.
Os teólogos receberam uma vocação particular para o serviço no corpo de
Cristo. Por esse chamado e pelos dons recebidos, eles têm uma relação
particular com o corpo e com todos os seus membros. Vivendo na “comunhão do
Espírito Santo” (2Cor 13,13), eles devem procurar, juntamente com todos os
irmãos e irmãs, conformar as suas vidas ao mistério da Eucaristia, “pela qual a
Igreja continuamente vive e cresce”. De fato, chamados como são a explicar os
mistérios da fé, devem estar particularmente ligados à Eucaristia, na qual está
contido “todo o bem espiritual da Igreja, a saber, o próprio Cristo, nossa
Páscoa”, cuja carne é vivificada e vivificante pelo Espírito Santo. Como a
Eucaristia é “fonte e ápice” da vida da Igreja e de “toda a evangelização”,
assim também é a fonte e o cume de toda a teologia. Nesse sentido, a teologia
pode ser entendida como essencial e profundamente “mística”.
A verdade de Deus não é,
portanto, qualquer coisa a ser explorada pela reflexão sistemática e
justificada pelo raciocínio dedutivo, mas é verdade viva, experimentada graças
à participação em Cristo, “que se tornou para nós sabedoria proveniente de
Deus, justiça, santificação e redenção” (1Cor 1,30). Enquanto sabedoria, a
teologia é capaz de integrar aspectos da fé, tanto estudados quanto
experimentados, e transcender, no serviço à verdade de Deus, os limites do que
é estritamente possível a partir de um ponto de vista intelectual. Uma tal
consideração da teologia como sabedoria pode ajudar a resolver dois problemas
enfrentados pela teologia, hoje: primeiro, oferece uma forma de preencher a
distância existente entre os crentes e a reflexão teológica e, segundo, oferece
a possibilidade de ampliar a compreensão da verdade de Deus, de modo a
facilitar a missão da Igreja em culturas não cristãs, caracterizadas por
diversas tradições de sabedoria.
O sentido de mistério que caracteriza propriamente a teologia leva a um
pronto reconhecimento dos limites do conhecimento teológico, que contrasta com
todas as pretensões racionalistas de esgotar o mistério de Deus. O ensinamento
do Concílio de Latrão IV é fundamental: “Entre o criador e a criatura, embora a
semelhança seja grande, maior é a diferença”. A razão, iluminada pela fé e
guiada pela revelação, está sempre consciente dos limites intrínsecos da sua
atividade. É por isso que a teologia católica pode assumir a forma de
“negativa” ou “apofática”.
No entanto, a teologia negativa não é de todo uma negação da teologia. A
teologia catafática e a apofática não devem ser colocadas em oposição uma à
outra; longe de desqualificar uma abordagem intelectual do Mistério de Deus, a
via negativa simplesmente destaca os limites de tal abordagem. Esta via é uma
dimensão fundamental de todo discurso autenticamente teológico, mas não pode
ser separada da via affirmativa e da via eminentiae. O espírito humano,
passando dos efeitos à Causa, das criaturas ao Criador, começa por afirmar a
presença de Deus por meio da autêntica perfeição descoberta nas criaturas (via
affirmativa); então nega que estas perfeições estão em Deus na forma imperfeita
que assumem nas criaturas (via negativa); finalmente, afirma que elas estão em
Deus de uma maneira propriamente divina, que escapa à compreensão humana (via
eminentiae). A teologia, justamente, pretende falar verdadeiramente do Mistério
de Deus, mas, ao mesmo tempo, sabe que o seu conhecimento, embora verdadeiro, é
insuficiente em relação à realidade de Deus, que nunca poderá “compreender”.
Como disse Santo Agostinho: “Se eu compreendi, não é Deus”.
É importante estar ciente da sensação de vazio e da ausência de Deus que
muitas pessoas sentem hoje e que impregna grande parte da cultura moderna. A
realidade primária para a teologia cristã, contudo, é a revelação de Deus. O
seu ponto de referência obrigatório é a vida, morte e ressurreição de Jesus
Cristo. Nesses eventos, Deus falou de modo definitivo por meio de seu Verbo
feito carne. A teologia afirmativa é possível como resultado da escuta
obediente da Palavra, presente na criação e na história. O Mistério de Deus
revelado em Jesus Cristo pelo poder do Espírito Santo é um mistério de
ekstasis, amor, comunhão e a compenetração das três pessoas divinas; um
mistério de kenosis, o despojamento da forma de Deus por Jesus em sua
encarnação, de modo a assumir a forma de um escravo (cf. Fl 2,5-11); e um
mistério de theosis, onde os seres humanos são chamados a participar da vida de
Deus e a participar “da natureza divina” (2Pd 1,4) por meio de Cristo, no
Espírito. Quando a teologia fala de um caminho negativo e da falta de palavras,
ela está se referindo a um sentido de temor reverencial diante do mistério
trinitário, no qual há salvação. Embora as palavras não possam descrever
totalmente, por amor, os crentes já participam do Mistério. “A ele, embora não
o tenhais, amais; nele, apesar de não o terdes visto, mas crendo, vos
rejubilais com alegria inefável e gloriosa, pois que alcançais o fim da vossa
fé, a saber, a salvação das vossas almas” (1Pd 1,8-9).
Um critério da teologia católica é que ela deve procurar e alegrar-se com
a sabedoria de Deus, que é loucura para o mundo (cf. 1Cor 1,18-25; 1Cor
2,6-16). A teologia católica deve enraizar-se na grande tradição sapiencial da
Bíblia, conectar-se com as tradições do cristianismo do Oriente e do Ocidente,
e procurar estabelecer uma ponte com todas as tradições de sabedoria. Na busca
da verdadeira sabedoria no estudo do Mistério de Deus, a teologia reconhece a
prioridade absoluta de Deus; pretende não possuir, mas ser possuída por Deus.
Ela deve, portanto, estar atenta ao que o Espírito diz às Igrejas, por meio do
“conhecimento dos santos”. A teologia comporta um esforço para a santidade e
uma consciência cada vez mais profunda da transcendência do mistério de Deus.
CONCLUSÃO
Assim como a teologia é um serviço prestado à Igreja e à sociedade, o
presente texto, escrito por teólogos, se propõe oferecer um serviço aos nossos
colegas teólogos e também com àqueles com os quais os teólogos católicos entram
em diálogo. Escrito com respeito por todos aqueles que levam adiante a pesquisa
teológica, e com um senso profundo de alegria de privilégio da vocação
teológica, esforça-se para indicar as perspectivas e os princípios que
caracterizam a teologia católica, oferecendo os critérios pelos quais a
teologia pode ser identificada. Em síntese, pode-se dizer que a teologia
católica estuda o mistério de Deus revelado em Cristo, e articula a experiência
de fé, que experimentam aqueles que estão em comunhão com a Igreja e participam
na vida de Deus, por graça do Espírito Santo, que conduz a Igreja à verdade (Jo
16,13). Pondera a imensidão do amor com que o Pai deu o seu Filho ao mundo (cf.
Jo 3,16), e a sua glória, graça e verdade que foram reveladas nele para a nossa
salvação (cf. Jo 1,14); e enfatiza a importância da esperança em Deus e não nas
coisas criadas, uma esperança que se esforça para explicar (cf. 1Pd 3,15). Em
todos os seus trabalhos, acolhendo a exortação de Paulo, de sempre “ser
agradecidos” (Cl 3,15; 1Ts 5,18), mesmo na adversidade (cf. Rm 8,31-39), é
fundamentalmente doxológica, caracterizada pelo louvor e ação de graças. Como
estuda a obra de Deus para a nossa salvação e a natureza incomparável das suas
obras, a glória e o louvor são a modalidade mais adequada, como São Paulo não
só ensina mas também dá exemplo: “Aquele, cujo poder, agindo em nós, é capaz de
fazer muito além, infinitamente além de tudo o que nós podemos pedir ou
conceber, a ele seja a glória na Igreja e em Cristo Jesus, por todas as
gerações dos séculos dos séculos! Amém” (Ef 3,20-21).
NOTAS
-
A CASA da palavra é a Igreja – LUMEN GENTIUM – QUE FALA SOBRE A IGREJA
EM SI MESMA – Temos que conhecer a nossa casa, S.d.
-
O ROSTO da Palavra é Jesus Cristo – liturgia, onde O ROSTO DE Deus se
revela – SACROSSACTUM CONCILIUM – Revelar o rosto de Cristo naquilo que ele mesmo
instituiu – os sacramentos.
- A VOZ da Palavra é a revelação – DOCUMENTO
CONCILIAR – DEI VERBUM – Depositos fidei – depósito da fé;
- FINALMENTE - o CAMINHO da Palavra é a
evangelização – GAUDIUM ET SPES, A Igreja no mundo – Os grandes desafios de levar
a Palavra ao HOMEM MODERNO".
- Concílio Ecumênico Vaticano II,
Gaudium et Spes, n. 3. A menos que indicadas de outra forma, citações de
documentos do Vaticano II são retiradas de Documentos do Vaticano II.
Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.
- Pontifícia Comissão Bíblica, The
Interpretation of the Bible in the Church (1993), II, B; também CCC 115-118. Teologia medieval fala de quatro sentidos da Escitura: Littera gesta
docet, quid credas allegoria, moralis quid agas, quo tendas anagogia. Concílio Ecumênico Vaticano II, Optatam
Totius, n. 16. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, Ia, q.36, a.2, ad.1: de
Deo dicere non debemus quod in sacra Scriptura non invenitur vel per verba, vel
per sensum.
- «O Concílio Vaticano II» (DOC).
Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios (PB). 1999. Consultado em 14 de junho de
2009.
- DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II NO ENCERRAMENTO DO CONGRESSO
INTERNACIONAL SOBRE A ACTUAÇÃO DOS ENSINAMENTOS CONCILIARES (2000)
-
Pontifícia Comissão Bíblica, A interpretaação da Bíblia na Igreja
(1993), III, C, 1; cf. Verbum Domini, n. 33.
- Pontifícia Comissão Bíblica, A
interpretaação da Bíblia na Igreja (1993), III, C, 1; cf. Verbum Domini, n. 33.
- Discurso de Sua Santidade Papa
João XXIII na Abertura Solene do SS. Concílio (1962); cap. V, n. 1
VATICANO, Documentos do Concílio Vaticano II: Constituições,
Declarações, Decretos
São Josemaria Escrivá (fundador do Opus Dei) e o Concílio Vaticano II
Evento: A Modernidade e o Concílio Vaticano II – 50 anos - do Centro
Loyola de Fé e Cultura / PUC-Rio em outubro/2012
Ligações favoráveis ao Concílio Vaticano II
http://www.catolicostradicionais.com.br/2010/02/artigo-o-que-perdemos-videos.html
DADOS BIBLIOGRAFICOS
1 ALBERIGO,Giusepp. (2006). A Brief History of Vatican
II (em inglês) 1 ed. (Maryknoll: Orbis Books).(2006). (p. 69. ISBN 1-57075-638-4.
2 CLINE,
Austin. «Biography: Pope John XXIII» (em inglês). About.com: Agnosticism / Atheism. Consultado em 13 de junho de 2009.
3 Papa Bento XVI, Exortação Pós-Sinodal
Verbum Domini n. 6; cf. Dei Verbo.(2010).
Santo Agostinho, De catechizandis rudibus 4, 8 (Corpus Christianorum
Série Latina [CCSL] 46:129).
4 ___________Agostinho, ‘Deus …
per hominem more hominum loquitur; quia et sic loquendo nos quaerit’ (De
civitate Dei XVII, 6, 2; CCSL 48:567); cf. Vaticano II, Dei Verbum, n. 12.
5 ___________ Agostinho, In
Joannis Evang., XXIX, 6 (CCSL 36:287); também, Sermo 43, 7 (CCSL 41:511).
6 ___________ Agostinho, De
Trinitate XIV, 1 (CCSL 50A:424): Huic scientiae tribuens … illud tantummodo quo
fides saluberrima quae ad veram beatitudinem ducit gignitur, nutritur,
defenditur, roboratur.
7 Papa João Paulo II, Carta Encíclica Fides et
Ratio (1998), palavras introdutórias.
8 CANO. Melchior. De locis
theologicis, ed. Juan Belda Plans (Madrid, 2006
9 CALDEIRA, R. Coppe. Os baluartes da tradição: o conservadorismo
católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011.
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